Continua a mexer connosco The Great Dictator, um clássico de Charlie Chaplin estreado em 1940, um ano após o início da Segunda Guerra Mundial. Este fim-de-semana o filme foi projectado no auditório do Teatro Camões com música tocada ao vivo pela Orquestra Sinfónica Portuguesa do Teatro Nacional de São Carlos e conduzida pelo maestro Timothy Brock.
Já não terá sido fácil um actor ajustar o ritmo dos seus movimentos à música da banda sonora do filme, mesmo se composta por si. Empresa mais difícil é uma grande orquestra acertar a música com o ritmo dos movimentos de Charlot. O maestro e a orquestra transmitiram as emoções certas em cada nota da banda sonora, na alegria da Dança Húngara n.º 5 de Brahms na cena do barbeiro com o cliente, ou no encantamento delicado do Prelúdio de Lohengrin de Wagner, na cena da dança do globo terrestre e na do discurso final.
Como acontece em outros filmes, Charlie Chaplin fez quase tudo: produziu, realizou, actuou e, à excepção das mencionadas obras de Brahms e Wagner, compôs com Meredith Wilson a banda sonora. A história começa na Primeira Guerra Mundial, onde Charlie Chaplin representa um barbeiro alemão e judeu, que se fez herói ao combater pelo seu país e ao salvar a vida de Schultz, um comandante piloto que se torna importante no novo regime. Charlie Chaplin interpreta este barbeiro judeu do gueto e também o ditador antissemita em ascensão, fisicamente confundível com o barbeiro. Na narrativa, Adolf Hitler é chamado de Adenoid Hynkel, Goebbels de Garbitsch, Göring de Herring, Benito Mussolini de Benzino Napaloni, a Alemanha de Tomainia, a Itália de Bacteria e a Áustria de Osterlich. São evidentes as parecenças, mas este uso de nomes imaginários ajuda-nos mais facilmente a encontrar hoje outras ligações para cada personagem e acontecimentos.
Após um terrível discurso do ditador às massas, Hynkel pergunta a Garbitsch o que achou do discurso. Ele responde que foi muito bom, embora a referência aos judeus pudesse ter sido mais violenta. Com frieza e o olhar vazio, o Ministro da Propaganda acrescenta que a violência contra os judeus seria útil para excitar a ira das pessoas de forma a esquecerem a sua própria fome. Aqui está, o fenómeno do bode expiatório bem explicado em tão breves palavras!
Nos momentos do filme em que o barbeiro interpretado por Chaplin está mais abatido e desanimado, o tema musical é “Zigeuner”, que em alemão significa “cigano”. Ele mesmo com família cigana, Charlie Chaplin identifica-se com a perseguição dos judeus naqueles anos 30 e 40. Sem ainda conhecer todos os horrores do nazismo, este corajoso retrato do Grande Ditador é certeiro na denúncia do pensamento político que irá gerar mais anos de guerra total, toda a sua destruição, os vários milhões de mortos, o genocídio dos judeus entre nós chamado de Holocausto e o genocídio menos conhecido dos ciganos, o Porajmos.
Em tão desolador contexto, este é um filme de esperança. Prova disso é outro tema musical de superior beleza intitulado “Hope Springs Eternal”. A obra tem vários momentos de ternura, mostra o humor físico de Charlot, reflecte sobre a ambição humana e a graça do absurdo, e tem as situações de injustiça e crueldade que são autênticos murros no nosso estômago. Existe um ténue fio condutor: o amor frágil e belo entre Hannah e o Barbeiro. No entanto, todas estas cenas vão somando uma tensão crescente que só podia pontificar no grande discurso final do Barbeiro. O Barbeiro toma acidentalmente o lugar do Ditador e mostra que a democracia nos oferece sempre a hipótese de uma alternativa: ainda podemos ser livres, humanos e decentes.
Sem comentários:
Enviar um comentário