domingo, 17 de março de 2024

Carta aos líderes do PSD, CDS e PPM e aos Deputados eleitos da AD



Lisboa, dia 17 de Março de 2024

Exmos. Senhores Líderes do PSD, do CDS e do PPM,

Exmos. Senhores Deputados Eleitos da AD,

 

Desde a noite das últimas eleições que oiço com perplexidade alguns dirigentes e ilustres dos vossos partidos a sugerir a necessidade de se negociar com o Chega uma solução de Governo.

 

Estará na altura da AD pensar de outra maneira? Será tempo de desfazer determinada cerca sanitária? Terá a força de um milhão transformado propostas infames e irreconciliáveis em ideias aceitáveis?

 

Não faz sentido colocar qualquer destas perguntas àqueles que foram eleitos em condições muito bem definidas pelos próprios. A única via digna é honrarem a palavra dada, este compromisso que assumiram diante dos eleitores, até ao fim do vosso mandato.

 

Eu votei na AD nessa condição. Nasci em 1986, sou casado e tenho três filhos. Vivo em Portugal e já vivi fora. Prezo muito a liberdade e a democracia que temos, princípios que gostaria de ver cada vez mais consolidados no nosso país. O PSD, o CDS e o PPM terão de estar à altura da sua História e mostrar ser melhores que o PS e que o Chega:

- melhores que o PS, não pactuando com partidos que ameaçam a democracia e as nossas liberdades — a democratização do erro não deve ser um argumento, como querem aqueles que dizem que, com o derrube do “muro” por António Costa, passou a valer tudo;

- melhores que o Chega, defendendo os vossos princípios e honrando a palavra dada —menções a Maquiavel, a Churchill e a Kissinger não devem significar que os meios justificam os fins, como pretendem aqueles que invocam o seu “realismo”.

 

Falemos então de realismo, pois é de elementar realismo reconhecermos que seria de um imperdoável oportunismo tentar mudar as regras a meio do jogo. Para convocar novas condições, só provocando novas eleições. Se é urgente ultrapassar o bloqueio, então encurte-se o mandato. Umas novas condições talvez possam desbloquear a situação, embora provavelmente já sem o meu voto. Mas quebrar compromissos, nunca! Essa hipótese seria mais uma machadada, quem sabe se fatal, desferida na reputação dos partidos da AD. Honrar a palavra não é uma opção, mas o vosso primeiro dever.

 

O que espero da AD é um governo novo, que olhe com frescura para a política, com ânimo construtivo para os problemas, com esperança para o país. Espero da AD que continue o caminho que encetou na campanha eleitoral, aberto à sociedade civil e indo buscar bom conselho a quem tem a experiência de governos anteriores. Com uma boa equipa no Governo, que proponha verdadeiras respostas para os problemas comuns que enfrentamos, irão prosseguir o caminho de reconciliação com os eleitores e alargar o vosso apoio.

 

Se souberem inspirar o país e devolver a esperança nos valores que nos unem, se encontrarem um governo que saiba mostrar todo o seu potencial de competência, mesmo que bloqueados pela oposição, a AD irá ser premiada nas próximas eleições. Foi isso que aconteceu entre 1985 e 87 e essa é a nossa esperança em 2024. Cumprir o que prometemos é o moralmente certo a fazer, sendo também neste caso o que estrategicamente faz sentido.

 

Confiando que sentem o apelo de quem vos confiou pelo voto um claro mandato, envio os melhores cumprimentos,

 

António Vieira da Cruz

sábado, 3 de fevereiro de 2024

Precisa a nossa Agricultura de mais subsídios?

(também publicado no Ingovernáveis, no Observador e no Agroportal)

 São dois assuntos demasiado sensíveis: agricultura e subsídios. Várias pessoas publicaram nas redes a sua indignação e solidariedade para com os agricultores que se manifestaram nos primeiros dias de Fevereiro, cortando a circulação de várias estradas do país. As razões deste protesto são em parte portuguesas: o Governo enganou-se ao inscrever uma área muito pequena (apenas 10 de 460 mil hectares) para reconversão da agricultura convencional em biológica, o que resultou em cortes de 35% nos apoios comunitários a ecorregimes de agricultura biológica e 25% nos de produção integrada. Mas as razões deste protesto são também europeias, com regras ambientais mais apertadas e o fim de subsídios ao gasóleo agrícola ou uma concorrência mais competitiva de produtores sul-americanos. Daí, a mimetização nacional dos métodos e slogans das manifestações em curso noutros países europeus.

 As palavras de ordem são dramáticas e o tom chega a ser violento: “sem agricultores não há comida”, “o nosso fim é a vossa fome”, “se o campo não planta a cidade não janta” e “a agricultura está de luto” são alguns exemplos. As imagens escolhidas para o ilustrar vão de agricultores a enforcarem-se, a senhora Morte com a gadanha a visitá-los ou os tractores a cercar um Parlamento Europeu em chamas. Também são divulgados vídeos de agricultores franceses a entrar nos supermercados e a destruir alimentos importados, ou a virar camiões de abastecimento de bens com a força dos seus tractores. Estes slogans e imagens são mais um sinal da crescente polarização da nossa sociedade, onde os ânimos da revolta são de novo empolados – parece que nada aprendemos com o descontrole emocional que guiou as ocupações de terras do Verão Quente de ’75!

 Fui ver o que os vários partidos diziam no Facebook nos últimos dias. O PSD comunicou que “a Aliança Democrática solidariza-se com a indignação dos agricultores portugueses” e que “os agricultores precisam de governantes que os dignifiquem, que cumpram compromissos”; o Chega anunciou que está “ao lado dos agricultores e da produção nacional” e que os políticos “falharam-lhes com os apoios”; o PCP diz que está “com os agricultores em protesto contra os baixos rendimentos e a imposição de preços por parte da grande distribuição” e que “esta situação requer a adopção de medidas para resolver os problemas verificados, garantindo que os agricultores não têm perda de rendimentos”. O PS nada disse. Da mesma forma, a Iniciativa Liberal, o Bloco de Esquerda, o PAN e o Livre fizeram absoluto silêncio sobre este assunto nas suas redes.

 Portanto, só o PSD, o Chega e o PCP ousaram falar do assunto. O Chega e o PCP são a favor de mais apoios para os agricultores, o PSD mais cauteloso com as palavras defende apenas que o mínimo deve ser cumprido: o Estado tem de honrar os compromissos a que se propôs. Porém, nenhum põe em causa a lógica dos subsídios à agricultura. Esta questão tem de se colocar mais tarde ou mais cedo, só que os nossos partidos ou são omissos ou são a favor de cada vez mais subsídios à agricultura, e nunca contra. Então, proponho que olhemos para esta questão de outro ângulo:

 A história de grande sucesso sobre subsídios agrícolas vem da Nova Zelândia. No início dos anos 1980, os agricultores deste país estavam quase tão dependentes de subsídios como hoje estão os agricultores europeus. No estudo “The Subsidy Scandal”, Charlie Pye-Smith escreve que “em 1983, os apoios à agricultura na Nova Zelândia eram 1/3 daquilo que os agricultores recebiam. O Governo e os próprios agricultores reconheceram que este estado de coisas não podia continuar. Em 1984 foram introduzidos cortes massivos nos subsídios à agricultura, que hoje representam apenas uma pequenina fracção daquilo que eram. Os benefícios desta medida foram largamente sentidos. O contribuinte já não está a ser extorquido. A retirada dos subsídios levou a um abrandamento do desmatamento, o que foi bom para o meio ambiente. E, mais surpreendente que tudo e ao contrário daquilo que tantos tinham previsto, o número de agricultores cresceu em vez de diminuir. Operando no mercado livre, os agricultores adaptaram-se e tornaram-se mais engenhosos para sobreviver. É assim que deve ser. Muitas vezes, os subsídios encorajam a dependência e a preguiça.”

 A Nova Zelândia é hoje uma potência agrícola que exporta carne, lã, fruta e vinho para todo o mundo. Lá, os subsídios reduziram-se a quase 1% daquilo que os agricultores recebem. Mas em Portugal o caso é bem diferente. Cerca de 35% dos fundos europeus são destinados à Política Agrícola Comum (PAC), que por sua vez merece mais de metade das leis comunitárias produzidas todos os anos. A PAC existe, na práctica e desde o início, para defender os interesses agrícolas franceses. Por exemplo, muitos agricultores portugueses começaram por aceitar o subsídio para arrancar vinha logo na altura da adesão, o que convinha aos produtores franceses de vinho. Depois, foram atrás de outros subsídios importantes, como o do milho, o do girassol, e tantos outros. Não cultivavam o que o mercado pedia, mas apenas aquilo que lhes dava mais benefícios. Assim, foram-se tornando mais dependentes destes apoios, até chegarmos aos dados de 2022 que mostram que em Portugal os subsídios à produção representaram cerca de 54% do rendimento empresarial líquido dos agricultores.

 Alguns subsídios muito concretos poderão fazer sentido económico e social. Um exemplo são os apoios à instalação de novas tecnologias que ajudem os agricultores a produzir mais, desperdiçando menos e melhorando o cuidado ambiental. Estes devem ser apoios de uma só instalação e devem ser dirigidos sobretudo a projectos agrícolas de pequena e média dimensão – não tanto àqueles que têm meios próprios para implementar essas mudanças. Agora, coisa diferente é subsidiar constantemente determinado produto que nos chega ao mercado de outro lugar com igual qualidade e um preço mais baixo. Isso já não tem sentido. Esse subsídio irá desvirtuar a concorrência e irá aumentar o seu custo: mesmo que o seu preço na prateleira pareça competitivo, o consumidor já pagou parte daquele custo em impostos enquanto contribuinte.

 Seria melhor seguir o exemplo da Nova Zelândia, onde as regras são mais simples, os impostos menos pesados, e onde os agricultores prosperam sem precisar de subsídios porque estão completamente orientados para as reais necessidades dos mercados onde colocam os seus produtos. Mas nos EUA, no longínquo Estado do Montana, os legisladores decidiram subsidiar os criadores de ovinos locais para concorrer contra os ovinos que lá chegavam com um marketing competente e a preços muito atractivos, vindos da… Nova Zelândia.

 Os agricultores merecem todo o nosso reconhecimento e respeito. No entanto, não podemos ficar reféns dos seus tractores e devemos questionar até que ponto os nossos impostos devem perpetuar determinadas ineficiências. Conhecemos o aumento do custo de produção de bens que alguém num gabinete de Bruxelas ou de Paris decide serem bons para a nossa saúde (pensemos no famigerado mirtilo), mesmo que tal não faça qualquer senso numa economia livre e de mercado. Os próprios agricultores também são contribuintes, tal como nós, e tal como os neo-zelandeses compreendem bem aquilo que aqui está em causa.

 Não estamos a questionar um qualquer subsídio social, como os prestados no campo da saúde, na área da educação, e até da cultura, ou sobretudo de amparo a quem não encontra trabalho e aos mais frágeis da sociedade. Há partidos que fazem esse papel. O que nenhum partido faz é pensar na razão de ser destes subsídios económicos a sectores de actividade que deviam libertar-se dos artifícios do Estado para finalmente se adaptarem à realidade e poderem encontrar os seus próprios meios de sustento. Encarar a realidade sem constrangimentos é o primeiro passo para podermos encontrar mais justiça, valorizar o trabalho dos agricultores e cuidar do nosso mundo rural.

 AVC

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

O erro de Robin dos Bosques

(originalmente publicado no Jacaré Parado Vira Mala)

Quem não gosta do Robin dos Bosques? A história passa-se na Inglaterra medieval e tem os problemas típicos da literatura romântica: há a donzela em apuros, há o xerife cruel, os pobres e famintos, um príncipe que conspira contra o rei seu irmão… e um herói que resolve todos os problemas com a pontaria do seu arco e flechas, ajudado por valentes amigos como Frei Tuck, João Pequeno e Will Scarlet. Escondidos na floresta de Sherwood, Robin dos Bosques e o seu bando vão resistindo à tirania de João Sem-Terra e sabotando as tentativas do xerife e do príncipe de se aproveitarem da ausência do rei Ricardo Coração-de-Leão que, entretanto, ajudava os cruzados em Jerusalém. Os valores estão todos certos: valentia, patriotismo, solidariedade, fé e amizade. Em Sherwood, Robin e os Merry Men caçam livremente, não pagam impostos, roubam os tesouros do príncipe e as colectas do xerife. Mas não o fazem para enriquecimento próprio, não! Eles roubam os ricos para dar aos pobres, assim nos é contada a história. Mas como tudo acaba com o regresso do rei da Terra Santa e a frustração das más intenções do seu irmão e do xerife, quase não temos tempo para imaginar Robin dos Bosques e os seus amigos a saírem da floresta para voltar à normalidade das suas vidas. É que, uma vez reposta a justiça e a paz, já não faz sentido eles continuarem a roubar.

Errol Flynn em "The Adventures of Robin Hood" (1938)

No entanto, a ideia de tirar dinheiro aos ricos para o redistribuir pelos pobres vingou. Sobretudo desde o crash de Wall Street em 1929 que o Estado assumiu o papel de Robin dos Bosques. Lembra-se que Robin dos Bosques, fora-da-lei, roubava as autoridades? Pois a autoridade, dentro da lei, fez nas últimas décadas aquilo que uma futura líder partidária tão bem resumiu: “perdeu a vergonha de ir buscar a quem está a acumular dinheiro”. Nestes quase 95 anos, os impostos aumentaram e tornaram-se progressivos um pouco por todo o mundo, as dívidas públicas galoparam, o Estado engordou e a liberdade económica das famílias enfraqueceu. Chegámos aqui com as experiências do comunismo no falido mundo soviético, com as experiências americanas do New Deal que desnecessariamente agravou a Grande Depressão e prolongou-a até à II Grande Guerra, com os sucedâneos socialistas e sociais-democratas, com as ideias rawlsianas de justiça distributiva e redistribuição da riqueza. Claro que há aplicações que apreciamos desse dinheiro, sobretudo a nível de saúde e educação. Mas olhamos para os públicos e para os privados com a pergunta: será o Estado o melhor gestor e executor desse dinheiro? Este afã do Estado tirar aos ricos para dar aos pobres nunca desapareceu, nem entre nós mostra sinais de abrandamento. A ideia subjacente é de algum modo utilitária: a subtracção daquele dinheiro ao rico causa-lhe menos mossa que o maior alívio proporcionado ao pobre que o recebe.

Voltemos à floresta de Sherwood. Quem no século XII viesse do Norte em direcção a Nottingham, chegava a Blyth e tinha duas opções: ou atravessava a floresta de Sherwood em poucas horas, ou ia por outro caminho e demorava mais um dia. Os mercadores de Sheffield, de Leeds ou de York teriam de pesar muito bem as hipóteses: vou pelo caminho da floresta e chego lá em poucas horas mas arrisco-me a ser roubado e a ficar sem nada; ou então vou à volta por um caminho mais seguro, mas tenho de gastar dinheiro numa estalagem para dormir, mais refeições para mim e ração para os meus cavalos. Se for grande o risco dos mercadores serem assaltados pelo bando de foras-da-lei da floresta de Sherwood, naturalmente eles escolhem o caminho mais longo e seguro. Porém, a consequência é que o preço das suas mercadorias iria aumentar para cobrir os gastos adicionais. Nessa situação, todos os seus clientes perdem poder de compra. E se as mercadorias forem bens de primeira necessidade, como alimentos e roupa, quem irá sofrer mais com esse aumento de preços serão… exactamente, os mais pobres.


A Floresta de Sherwood e Nottingham

Vamos esquecer por um momento a questão política entre os partidários de João Sem-Terra e os partidários de Ricardo Coração-de-Leão. Foquemo-nos apenas na questão económica. Os assaltos de Robin dos Bosques na floresta de Sherwood são para roubar os ricos e dar aos pobres, mas na verdade estes assaltos tornam a vida dos pobres mais difícil. Os preços aumentam para todos, o que tem especial impacto junto dos pobres. Aquilo que os pobres recebem de graça acaba sendo também um incentivo para não trabalharem tanto ou até de todo. Os mercadores e os produtores recebem o incentivo para produzir menos ou até parar. Ricos e pobres, todos ficam mais pobres. A economia encolhe. Havendo menos comércio, há menos colecta de impostos. Mas as contas do Estado não encolhem, então sobem os impostos e, novamente, os preços. Quem mais sofre com isto é, já sabemos, os pobres. Para além do incentivo a produzir menos, existe também um incentivo ao desenvolvimento de um mercado paralelo não taxado. Este ambiente propício à fuga aos impostos prejudica a sociedade como um todo e contribui para o círculo vicioso de crise.

A ideia de Robin dos Bosques é literariamente interessante, mas politicamente prejudicial – tanto a ricos como a pobres. Poderemos discutir outros métodos para evitar que ninguém caia na miséria de uma vida sem condições de dignidade. Sem dúvida que deve haver uma rede de segurança para evitar essas situações e ajudar as pessoas que caiem a relançarem-se na vida. Não devemos é fazê-lo sem questionar a validade política e a sustentabilidade económica do princípio de Robin dos Bosques.

AVC

sexta-feira, 24 de março de 2023

The Forgotten Conservatism: Why Chega is Not Right

(originalmente publicado na revista The European Conservative)

William Graham Sumner (1840-1910)


“Chega!” is the Portuguese phrase for “Enough!” Does such an interjection sound conservative to you? Neither to me. However, the new Portuguese party named “Chega!” claims to be conservative. Founded in 2019 by André Ventura, Chega won 7% of the votes in the last legislative elections and became the third largest party in Parliament. Since then, the international media have taken for granted that Chega is a conservative party. I would like to dispute that idea and make a broader reflection about the conservative brand.

I am writing this article in rural Portugal, in a town where the Chega party currently is leading the opposition against the Socialist party. Many of the rural people whom I know voted for Chega, and some of them are my friends. Hillary Clinton was terribly wrong in thinking that such a group of supporters were deplorable—in fact, all parties have good people within their supporters. Like many of Donald Trump’s voters in the U.S., the common denominator of Chega voters is that at some point they were somehow mistreated by fortune and are now fed up with the system. Chega is right in identifying the problems of the person that works and pays too many taxes. We may find echoes of this in the thoughts of William Graham Sumner, on the ‘Forgotten Man’:

As soon as A observes something which seems to him to be wrong, from which X is suffering, A talks it over with B, and A and B then propose to get a law passed to remedy the evil and help X. Their law always proposes to determine what C shall do for X or, in the better case, what A, B and C shall do for X. As for A and B, who get a law to make themselves do for X what they are willing to do for him, we have nothing to say except that they might better have done it without any law, ‘but what I want to do is to look up C. I want to show you what manner of man he is. I call him the Forgotten Man … He works, he votes, generally he prays – but he always pays – yes, above all, he pays … All the burdens fall on him, or on her, for it is time to remember that the Forgotten Man is not seldom a woman.

Some years later, while pushing for the New Deal, President F.D. Roosevelt gave another meaning to the Forgotten Man. For him, the Forgotten Man was not man C but man X, as we can read from Amity Shlaes’ insightful book on the Great Depression. However, the original idea of a Forgotten Man is the conservative disposition to relieve the tax burden on those who work and pay without seeing the benefits of it. 

Chega’s conservatism—if there is any—stops there. Chega is really no more than an anti-system protest party that speaks to the Forgotten Man but misrepresents him. For instance, many Portuguese farmers support Chega. The scheme of incentives and protections within the EU is such that farmers are encouraged to grow what the EU determines through the Common Agricultural Policy. It is not unusual to hear that our farmers don’t grow vegetables or breed animals, they just cultivate subsidies. Many products are not economically viable to produce—think of Portuguese organic blueberries—but the EU subsidizes them because some technocrats think they are good for our diet and health. Whether or not the market demands organic blueberries is just an insignificant detail. Who pays? The Forgotten Man, of course. We could have been inspired by the New Zealand agricultural policy that removed subsidies in the 1980’s and helped its farmers to prosper, exporting goods and producing what the markets really demand. Instead, Chega and the other mainstream parties just ask the Government and the EU for incentives and support to Portuguese farmers—meaning more subsidies.

Trump and Ventura identified the Forgotten Man in Appalachia and in Alentejo, in Detroit and in Barreiro. But then, Ventura introduced an element of conflict and turned person C against persons A, B, and X. The old communist class conflicts of workers against the capitalists are replaced by new class conflicts, using the terms of classical Marxist method and identity politics, but with different actors: the taxpayer against the gypsies, the common citizen against corrupt politicians, the good persons against parasites and paedophiles. Ventura likes to surf those divisions, shocking the public and playing with the media just like Trump did. He insists on scapegoating gypsies, politicians, and the media for all the corruption that soaks the money of the “people of good.” Ventura wants to create the Fourth Portuguese Republic, where the president would have more powers.

Regarding Christian values, Ventura also doesn’t convince. Chega voted against euthanasia, but Ventura is satisfied with the current liberal abortion law in Portugal—he says he would not change it. Ventura also supports gay marriage. But he likes to call journalists to photograph him in church, praying on his knees. He is open to the death penalty. He is for lower taxes but at the same time he is for higher wages for policemen, doctors, nurses, and other public servants. In other words, his proposals would result in less revenue with more expenditure. The only way to finance such delirium is by raising public debt and overcharging another Forgotten Man: the generations to come. Do you sense any fiscal conservatism here? Me neither.

In Portugal, the common adversary for the Right is the Socialist Party hegemony. Against the Socialists, there is no formal conservative alliance, but something much weaker than that. It is merely an implicit coalition of non-socialist parties. In fact, there are no conservative parties in the Portuguese parliament. Portuguese conservatives look to the right benches of their parliament and can only find a set of contradictions: a popular-democratic party that identifies itself as social-democratic (PSD); a liberal-libertarian party (IL); and a populist protest party (Chega). Yes, Chega is right-wing, but of a non-conservative type.

Brexit is a good example of how different sensibilities on the Right could act separated and still add value to the same objective. There was no need for a unified campaign. Dominic Cummings’s choice to distance his Vote Leave campaign from the Leave.EU campaign was proven right. That way, each campaign spoke to their public without harming their message with toxic associations. Separated, they added votes and won. Likewise, some decades before, William F. Buckley Jr. promoted a variety of conservative tendencies at The National Review magazine, but saw the advantage of defining some boundaries, in order to distance the conservative brand from the style and content of—for example—Ayn Rand or the John Birch Society. The same lesson applies to Portugal, where the largest party in opposition, PSD, should consider distancing itself from Chega. Polls suggest that there is a will to change and to vote for an alternative to the disastrous socialist government. But to become a stronger alternative to the socialists, PSD needs to make a leap of courage and categorically refuse any alliance with Chega.

But the bottom line is that we need a real conservative party in Portugal. There is none right now. We need an alternative that embraces the conservative disposition of Michael Oakeshott; protects the little platoons of society of Edmund Burke, Robert Nisbet, and Richard John Neuhaus; preserves the landscape for future generations as it was idealized by Roger Scruton or Gonçalo Ribeiro Telles; cares for the traditions and respects the human ecology proposed by Pope Benedict XVI; promotes sound economic policies like the ones of Alexander Hamilton, Calvin Coolidge, Ronald Reagan, or Margaret Thatcher. We need to cherish the value of life, family, property, nation-state, religion, neighbourhood, free association, fairness, charity, and work. And above all, as Sumner puts it, “the Forgotten Man would no longer be forgotten where there was true liberty.” No less than values, conservatives should not underestimate the importance of a democratic framework that respects checks and balances and the rule of law. These are the dearest things we must always conserve.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Obrigado, Ciganos!

(também publicado no Ingovernáveis)


“Então vais escrever um artigo a defender os ciganos? Não te metas nisso!” Pessoas próximas avisam-me, mesmo sabendo que um aviso destes costuma ser incentivo para eu avançar. Mostrei a alguém só este título, de resposta recebi uma exclamação: “que exagero!”. Avanço com ainda mais motivação, mas aviso desde já que o texto não vai ser curto. Dado o assunto em causa, sou apenas forçado a fazer um pequeno preâmbulo, e aproveito esta publicação para não ter de o fazer mais vezes. Preâmbulo: a lei é igual para todos, todos somos iguais diante da lei e a lei deve ser aplicada indiscriminadamente. “Ah, mas há problemas na comunidade cigana” – certo, mas há problemas em todas as comunidades, incluindo Portugal enquanto comunidade. Quem já estudou ou trabalhou na Europa Central e do Norte sabe como podem ser vistos os portugueses – e por vezes basta apenas lá passar de visita. Não é só o então presidente do Eurogrupo Dijsselbloem a dizer que os portugueses gastam o dinheiro em bebidas e mulheres, qualquer português sabe o que é ser agrupado num grupo de “PIGS”, ser entendido como porteiro ou pedreiro em França, ou ouvir de um nórdico que a gente do Sul é subsídio-dependente, preguiçosa e cheira a alho. Mesmo que os nossos governantes tenham mostrado incompetência crónica a gerir a nossa dívida pública, devemos nós aceitar calados este tipo de generalizações? “Ah, mas já viste os ciganos à porta do hospital? E já os viste em grandes grupos diante do tribunal?” – sim, já vi. E então, é proibido? “Mas sabes como eles são violentos, e não obedecem às leis, e vão de Mercedes buscar os subsídios, e tudo fazem impunes…” – não creio que assim seja, conheço muitas situações que mostram o contrário, mas em todo o caso repito que a lei é igual para todos, todos somos iguais diante da lei e a lei deve ser aplicada indiscriminadamente. “Pois, também há excepções, por acaso até conheço um cigano que é impecável, mas a comunidade…” – e quantos ciganos conheces? “Hummm… er… um.”  Todos temos iguais direitos e iguais deveres. Todos temos a mesma dignidade humana. Não conheço um cigano que defenda o contrário. No entanto, entristece-me dizer que conheço várias outras pessoas que sim. Essas pessoas não são apenas os militantes e simpatizantes de novas agremiações políticas, e tenho amigos que são. São muitas outras pessoas. Quem nunca reparou em sapos de barro numa montra de loja ou à porta dum café? Muitas pessoas sentem-se condicionadas por uma mitificação dos ciganos. No meu caso, normalmente só me tenta condicionar quem dos ciganos não gosta ou desconfia. Este pequeno preâmbulo parece-me elementar, mas é necessário fazê-lo. Continuemos.

É notório que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa (MRS) tem acusado algum cansaço na fase mais recente do seu mandato. Ninguém consegue estar imune a gaffes quando fala tanto e tantas vezes de improviso. Porém, neste último 1º de Dezembro, MRS voltou a ter uma intervenção relevante e de superior qualidade onde prestou homenagem aos heróis ciganos que tombaram por Portugal e contribuíram para a Restauração da nossa independência.

Nesta mensagem, MRS começa por evocar os 40 conjurados que conhecemos e todos aqueles que “aquém e além-mar” lutaram na recuperação da independência de Portugal. Esta não foi apenas uma vitória dos notáveis conjurados e do Rei D. João IV que os liderou, tratou-se também dum feito dos outros “muitos [que] se implicaram” e do “Povo Português”. Entre os muitos que souberam ser os bastantes, MRS destaca o cavaleiro fidalgo Jerónimo da Costa e 250 outros ciganos que combateram por Portugal. Lembramos o esforço hercúleo dos heróis da Restauração: após 60 anos de domínio filipino, a recuperação da independência foi iniciada a 1 de Dezembro de 1640 e defendida em vários campos de batalha ao longo de 27 anos, culminando com a paz do Tratado de Lisboa em 1668. Neste tratado, Espanha reconhece a Restauração da Independência de Portugal e devolve todos os prisioneiros e conquistas (Olivença incluída), com duas excepções: a aldeia raiana de Ermesende e a cidade de Ceuta, esta última que decidiu manter-se na coroa espanhola apesar de conservar até hoje no seu brasão as armas do nosso país. 

Os ciganos portugueses fizeram parte de todo este esforço, também a eles devemos a nossa independência. Em 1646, o procurador da coroa Thomé Pinheiro da Veiga escreve a D. João IV atestando que Jerónimo da Costa “serviu a V. Majestade três anos contínuos nas fronteiras do Alentejo, com suas armas, e cavalo, tudo à sua custa, sem levar soldo algum, franca, e fidalgamente: e relata-se mais em nome de V. Majestade, o valor e esforço [(…)d]as suas proezas, até que na Batalha do Campo de Montijo foi morto com muitas feridas, pelejando sempre mui esforçadamente. (…) Serviu valerosamente no Campo, até deixar a vida, aonde tantos infamemente fugiram, à vista dos que esforçadamente morreram, ou pelejaram”. Três anos depois, em 1649, D. João IV reconhece em alvará os “mais de duzentos e cinquenta [ciganos] em meu serviço desde o tempo de minha feliz aclamação alistados com zelo e valor, com que já foram muitos apremeados”, no entanto confirma no mesmo documento a sua ordem de prisão e degredo de ciganos para Angola e Cabo Verde e, a quem alugasse casas a ciganos ou os recolhesse, o Rei destina degredo para Castro Marim ou África conforme a gravidade e, no caso de serem fidalgos, a sua expulsão da Corte.

Jerónimo da Costa não é exemplo único e não é apenas isto que devemos aos ciganos. Infelizmente, também as duras leis contra os ciganos não são inéditas na História. Lembremos a Porajmos ou Devoração, o nome dado ao genocídio cigano às mãos dos nazis, com várias centenas de milhares de ciganos fuzilados e gaseados em campos de concentração. Estima-se que morreram 25% a 50% do total de ciganos europeus durante os 10 anos de poder de Hitler. Não posso deixar de ter profunda simpatia por um povo que, como os rohingyas, ou como os judeus até à formação do Estado de Israel, são em cada lugar tratados como estrangeiros. Mas não são, e lembro alguns nomes para mostrar que Portugal e o Mundo devem muito daquilo que têm de melhor à comunidade cigana.

Os ciganos e a sua admirável cultura contribuíram e contribuem muito para a nossa vida. Quem não admira a bela cigana Esmeralda, a única pessoa capaz de tratar Quasimodo com dignidade no romance de Victor Hugo? Quem, ao ler García Lorca, não quer acompanhar Antõnito El Camborio que caminha a pé com uma vara de marmeleiro, em direcção a Sevilha, para ver os toiros? Quem não se impressiona com a valentia do Beato Ceferino Giménez Malla “El Pelé”, catequista e patrono dos ciganos que na Guerra Civil Espanhola protegeu um padre das agressões e morreu fuzilado gritando “Viva Cristo Rey!”? Quem não tem curiosidade sobre a peregrinação dos ciganos a Saintes-Maries-de-la-Mer, na Camarga, com a linda procissão das santas acompanhadas por milhares de pessoas a pé, a cavalo e em barcos? E já que falámos de toiros, Hemingway menciona os ciganos e descreve-os como ninguém, muito direitos e olhando de frente os toiros na arena. E entre nós, lida hoje com muita alegria o talentoso cavaleiro cartaxense Parreirita Cigano. Essa ligação especial dos ciganos com os cavalos vê-se também no campo, nas estradas do Ribatejo e do Alentejo, até em Peaky Blinders, nos circos, nas feiras… e o que seriam os circos e as feiras sem os ciganos? Podemos pensar em flamenco e ouvir o purismo de Camarón de la Isla ou a rouquidão melódica de Diego el Cigala, hipnotizados pelas sevilhanas de vestidos às bolas rodopiando e rodando os folhos enquanto desenham poesias aéreas com os seus braços. Deixando essa arte para quem sabe, quem de nós nunca dançou ao som dos Gipsy Kings e das Azúcar Moreno? Quem nunca vibrou com o desempenho no grande ecrã de Bob Hoskins, Sir Michael Caine ou Sir Charlie Chaplin, todos eles de origem cigana?

Contemplemos por um momento Charlie Chaplin. Dele dizia Pablo Neruda “Carlos Chaplin, el último padre de la ternura en el mundo”. Não se sabe ao certo onde Charlie Chaplin nasceu, mas poderá ter sido num acampamento cigano em Black Patch, Birmingham. Quem viu Peaky Blinders sabe do que se trata. Ser cigano não era um assunto, mas Chaplin deu pistas e escreveu “preferia ser cigano a actor de cinema”. Talvez aí esteja a chave para entendermos Charlot, a sua figura cinematográfica. Em “Charles Chaplin, o Self-Made-Myth”, José-Augusto França diz que “para Charlot, o tipo de vida ideal, aquela que, por assim dizer, admite como oficial a sua vagabundagem, é a do cigano – ausência de obrigações cívicas, alheamento ao progresso mecânico, apartamento de qualquer geografia política, uma vida meio selvagem, vivida na surpresa aventurosa do dia a dia, da curva das estradas que vão ter a um sítio que é sempre outro, e onde a sua manha pode desencantar a subsistência necessária. Se Charlot fosse alguma coisa (é-o frequentemente nos seus filmes – dentista, bombeiro, criado de café, polícia, operário, varredor, caixeiro, desempregado), a essa coisa preferiria ser cigano e a partida em vagabundagem, é a conclusão de muitos filmes em que se apresentara como trabalhador; é sempre a sua conclusão lógica…”. Num outro texto, José-Augusto França vai mais longe e chama Charlot de “(ousarei dizê-lo aqui? – talvez brincando, talvez não…) uma espécie de Zé Povinho universal!”

Por falar em Zé Povinho, é escusado lembrar que somos os campeões europeus de futebol em 2016 com Ricardo Quaresma, e que não o seríamos sem ele. Mas eu não quero ser resultadista, o que seria da magia do futebol sem as trivelas daquele que ficou conhecido como o Harry Potter do futebol? Tenho de referir também a música portuguesa dos Ciganos d’Ouro, de Diego el Gavi e Nininho Vaz Maia, cada um no seu registo, com imensa qualidade e sucesso. Mas se falamos de cultura portuguesa, o fado é incontornável. E que seria do fado sem a mítica Severa? Nascida em 1820 na Madragoa, esta cigana viveu na Mouraria, na Rua do Capelão em tantos fados cantada. Ali, Amália Rodrigues descerrou uma placa que diz “Nesta casa viveu Maria Severa Onofriana / Considerada na época a expressão sublime do Fado / Faleceu em 30-11-1846 com 26 anos de idade / Lisboa 3-6-1989”. Júlio Dantas escreveu “A Severa” em 1901, o primeiro filme sonoro português tem o mesmo nome e foi realizado por Leitão de Barros 30 anos depois, muitos fados e homenagens a referem e, mais recentemente, centenas de milhares de pessoas puderam ver o musical “Severa” de Filipe La Féria. Outro apontamento que nos faz encontrar a forte influência cigana no fado é o belíssimo Fado da Sina cantado por Hermínia Silva no filme “Um Homem do Ribatejo” (1946) e que foi um dos maiores sucessos do seu repertório. Assim, a cultura cigana não são só é portuguesa, como a arte destes ciganos nos ajuda a sermos melhores pessoas e melhores portugueses.

Não devia fazer o que acabo de fazer, que é citar tão por alto tantos nomes maiores, ciganos que marcaram indelevelmente a nossa cultura, em tão poucas linhas. Mas, para efeitos de publicação deste artigo que já vai longo, é necessário tentar meter o Rossio na Betesga. Penso que não é preciso citar mais nomes para provar o meu ponto. São tantos os que conheço que ficam de fora... mas tantos mais são aqueles a quem muito devemos e não sabemos que são ciganos!

Por contacto directo, acho também importante referir o trabalho de campo da Pastoral dos Ciganos, instituição católica preocupada com a promoção e integração social do povo cigano, com total respeito pelos seus valores culturais. É assim que deve ser. Pude ver como agem com amor e eficácia em bairros sociais onde, sem qualquer tipo de dúvida posso afirmar que a raiz de todos os problemas é o mau urbanismo. Vi-o com os meus olhos em dois bairros na periferia de Lisboa, num dos casos era uma pequena e antiga aldeia tradicional que de repente recebeu um grande bairro de prédios sociais para realojar pessoas que viviam onde se fez a Expo 98. As pessoas foram realojadas por zonas: os ciganos na parte Norte, os africanos num lado e os brancos noutro lado. Já viram a insensibilidade social do decisor político? Os males sociais desse bairro estavam bem repartidos por todas as comunidades. Um dia, vi uma mãe cigana sair do autocarro com o filho bebé às costas. Os meninos de outra comunidade, crianças de 7-8 anos que jogavam futebol na rua, pararam a bola e pegaram em pedras. Alguma das pedras acertou no grande manto preto da cigana, mas ela seguiu caminho e nem olhou. Ali, naquele momento, a realidade foi tão crua quanto n’O Senhor das Moscas de William Golding. O problema ali não eram os ciganos. Não eram as outras comunidades. Naquele caso, como em tantos outros, a raiz de todos os problemas é tão somente o mau urbanismo.

Voltando à mensagem do 1º de Dezembro, qual é o alcance das palavras do Presidente? Muito imediatamente, são palavras presidenciais com enorme ressonância mediática durante dias e permanência nos algoritmos dos motores de busca sempre que alguém no nosso país procurar por “ciganos”. E sobretudo, a maior importância destas palavras de MRS está indicada no fim do seu texto: “Este dever de memória é de elementar Justiça e rompe com tanto esquecimento e discriminação de que os ciganos têm, infelizmente, sido alvo no nosso País”. Já o discurso de MRS no 25 de Abril de 2021 tinha sido extraordinário por compreender e integrar as várias facções em confronto na nossa História recente, reconhecendo bons argumentos a uns e a outros. Voltou a ser importantíssima esta intervenção de MRS no 1º de Dezembro de 2022, no seguimento de ter sido o primeiro Presidente a estar presente nas comemorações do Dia Internacional do Povo Cigano, na Maia, em 2018. Espero que MRS consiga limitar os seus momentos de improviso e possa oferecer-nos mais intervenções como estas.

Por estas razões, falou por mim o Presidente quando declarou que “Portugal lembra-os, presta-lhes homenagem e exprime a sua gratidão.” Faço também coro das palavras do Papa Francisco falando aos ciganos durante a sua viagem apostólica à Roménia em 2019: “Em nome da Igreja, peço perdão, ao Senhor e a vocês, por todas as vezes que, ao longo da história os discriminamos, maltratamos ou os consideramos de forma errada, com o olhar de Caim em vez do de Abel, e não fomos capazes de os reconhecer, apreciar e defender na sua peculiaridade”.

Jerónimo da Costa, herói e mártir da Restauração da Independência de Portugal, merece ter o seu nome gravado em bonitas ruas e praças deste Alentejo que defendeu. Por tudo isto e mais ainda: Obrigado, Ciganos!

segunda-feira, 30 de maio de 2022

A legitimidade deste Supremo Tribunal dos EUA

(também publicado no Ingovernáveis)


Os juízes do SCOTUS em 2022 - Kavanaugh, Kagan, Gorsuch, Coney Barrett, Alito, Thomas, Roberts, Breyer, e Sotomayor.

Existe a possibilidade de, nos próximos dias, o Supremo Tribunal dos EUA reverter as decisões de 1973 e 1992 que sustentam um ‘direito’ das mulheres americanas ao aborto. A propósito, tenho lido vários artigos de opinião que explicam muito bem o que está em causa. Não querendo repetir esses argumentos, gostaria de propor mais um ângulo de análise sobre as correntes de pensamento que têm dominado o Supremo Tribunal dos EUA.

Embora haja uma longa lista de razões para o considerarmos um dos piores presidentes da História dos EUA, Donald Trump tomou uma decisão incrivelmente acertada: nomeou para o Supremo Tribunal juízes ‘originalistas’, isto é, magistrados que defendem que as normas constitucionais têm de ser interpretadas com base no propósito original. O Supremo Tribunal é a última instância de justiça nos EUA; os juízes que o integram, conjuntamente, têm a competência de julgar os casos que lhes são submetidos; e devem fazê-lo à luz da Constituição dos EUA e das suas ‘emendas’. Esta Constituição, em vigor há 233 anos, é uma das mais antigas e menos extensas constituições do Mundo. A sua brevidade oferece uma boa leitura da natureza humana e do contexto cultural americano onde se insere, contribuindo para o respeito que o documento merece.

Um juiz do Supremo Tribunal dos EUA é primeiro nomeado pelo Presidente e depois confirmado pelo Senado. A partir do momento em que toma posse e faz os seus juramentos, o mandato do juiz é vitalício (salvo nos casos em que se demita, decida reformar-se ou seja destituído em consequência de um processo de impeachment). Fez esta semana 234 anos que Alexander Hamilton publicou o Federalist Paper nº 78, sobre o Poder Judiciário, onde defende a estabilidade nos cargos judiciais com a finalidade de “assegurar uma aplicação constante, correcta e imparcial das leis”, acrescentando que “nada contribuirá tanto para o sentimento de independência dos juízes – factor essencial ao fiel desempenho das suas árduas funções”. Os Federalist Papers são um conjunto de 85 magníficos artigos publicados por Hamilton, James Madison e John Jay com o objectivo de debater a bondade da Constituição dos EUA e convencer os seus compatriotas a aceitá-la.

O Federalist Paper nº 78 replica a ideia de Montesquieu de que “o Judiciário é, sem comparação, o mais fraco dos três poderes”, porque se limita a julgar e não dispõe da força do Executivo nem do poderio do Legislativo. No entanto, Hamilton alerta para um risco: “não será demais temer que os tribunais, sob o pretexto de não gostarem de determinada lei, decidam, a seu bel-prazer, modificar as intenções do legislador”. Os juízes não deverão, pois, tentar “substituir o julgamento pela vontade” fazendo predominar os seus desejos sobre os do legislador. E acrescenta: “se tal procedimento fosse válido, não seria necessário que os juízes deixassem de pertencer ao Poder Legislativo”.

A segunda metade do século XX e os primeiros anos do XXI mostraram a razão de ser desta preocupação de Hamilton. Ao longo deste tempo, alguns juízes foram adoptando uma atitude mais subjectiva perante o texto constitucional, fazendo uma interpretação pessoal e livre que adaptasse as normas ‘aos desafios dos tempos presentes’ – o que quer que isso signifique –, e por vezes torcendo argumentos de maneira a justificar as suas opiniões e sensibilidades políticas mais íntimas. Estes são os chamados “juízes progressistas” ou “juízes activistas”, que formaram as maiorias no Supremo Tribunal desde os anos 70, controlando-o. São os responsáveis por decisões polémicas como a “Roe v. Wade” que, em 1973, entendeu que havia um direito constitucional à ‘privacidade’ nos EUA, âmbito onde cabia um ‘direito ao aborto’. Por oposição, há juízes mais literais na interpretação da constituição, que tentam cingir-se ao texto e ao espírito da lei, isto é, o propósito original com que foi feita, tendo em conta a actualidade mas também os autores e a altura em que foi promulgada. Quem segue esta filosofia são os chamados “juízes originalistas”. É óbvio que há vários matizes entre estas duas atitudes ou escolas de pensamento, tantos quantos os juízes que pelo Supremo Tribunal dos EUA têm passado. Porém, é útil simplificarmos a questão desta maneira para compreendermos a principal tensão neste debate das últimas décadas.

Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e Amy Coney Barrett são os três juízes que Trump nomeou e o Senado confirmou entre 2017 e 2020. Estes três juízes substituíram dois juízes nomeados por Reagan e uma juíza nomeada por Clinton, juntando-se a outros juízes originalistas como Clarence Thomas e Samuel Alito. Como a actual composição do Supremo Tribunal prevê nove juízes, estes cinco originalistas já compõem uma maioria de 5-4, podendo nalguns casos ser de 6-3 se contarmos com a ‘previsível imprevisibilidade’ do juiz John Roberts.

Uma das razões principais pela qual Donald Trump ganhou o voto do eleitorado mais cristão não foi seguramente o seu estilo ou a sua conduta pessoal, mas o facto de ter apresentado aos eleitores uma lista de candidatos ao Supremo Tribunal dos EUA, prometendo nomear apenas pessoas que constassem dessa lista. Perante a alternativa ‘catastrófica’ que – no campo dos costumes – personificava Hillary Clinton em 2016, estes eleitores sentiram a excepcionalidade do momento e decidiram (apesar de tudo o resto) dar o seu voto a Trump. Então, foi com crescente dificuldade e oposição dos democratas que ao longo da sua administração foram nomeados os três novos juízes para o Supremo Tribunal, todos relativamente novos e na casa dos 50 anos. 

Nos anos 80, Ronald Reagan foi outro presidente que fez nomeações importantes e que equilibraram o Supremo Tribunal. Depois de em 1981 nomear a primeira juíza do Supremo Tribunal, Sandra Day O’Connor, em 1986 nomeou o ‘conservador’ William Rehnquist e o primeiro juiz italo-americano: Antonin Scalia, que era ‘originalista’ e ‘textualista’. Em 1987 tentou nomear outro originalista, Robert Bork, que, por levantar dúvidas de que a Constituição protegesse um direito à privacidade, e muito menos um direito ao aborto no âmbito do direito à privacidade entre a mulher e o seu médico, foi chumbado no Senado por 42–58, após um processo tão desgastante que deu origem a um verbo: “to bork”. Mais tarde chega ao Supremo Tribunal o juiz Clarence Thomas, também originalista. Nomeado pelo presidente George H. Bush em 1991, alcançou uma curta margem de 52-48 após uma campanha de boatos difamatórios vinda de activistas que conheciam a fragilidade constitucional de decisões como a Roe v. Wade. Como disse a feminista Florynce Kennedy sobre Clarence Thomas, “We're going to bork him. We're going to kill him politically”.

Antonin Scalia e Clarence Thomas (a partir de dentro) e Robert Bork (a partir de fora) fizeram escola; e seguiram-se outras nomeações de juízes originalistas, como Samuel Alito (nomeado por George W. Bush) e os três juízes nomeados por Trump, todos eles superando tentativas falhadas de “borking”, em especial o juiz Brett Kavanaugh que foi alvo de uma campanha de assassinato do carácter muito similar à que foi dirigida ao juiz Clarence Thomas 27 anos antes. Pouco a pouco, os últimos 4 presidentes republicanos foram nomeando para o Supremo Tribunal juízes originalistas que, finalmente, têm hoje a maioria. O caminho fez-se com dificuldade, sob uma chuva de calúnias, mentiras, e inclusivamente sob a ameaça de se acrescentar o número de juízes para mais do que os actuais nove… Por fim, e mais recentemente, com fugas de informação nunca antes vistas de documentos preparatórios do tribunal, revelação de moradas pessoais e consequentes manifestações de assédio à porta das próprias residências dos juízes e suas famílias.

Os ânimos políticos aqueceram muito nas últimas semanas com a possível reversão das decisões Roe v. Wade (1973) e Planned Parenthood v. Casey (1992), casos que reconheciam alguma protecção constitucional no ámbito federal a um eventual ‘direito de abortar’. Tenho ouvido vários comentadores americanos e portugueses a dizer que estes originalistas mentiram nas audições do Senado quando, antes da nomeação, foram interrogados sobre se respeitariam o precedente destes e outros casos. Eles responderam naturalmente que sim, que os precedentes seriam respeitados e tidos em conta, mas afirmaram também que as bases constitucionais é que são o sustento de qualquer decisão do Supremo Tribunal dos EUA. Independentemente da posição de cada um sobre as várias questões, o Supremo Tribunal irá debruçar-se apenas sobre a Constituição dos EUA e decidir se existe ou não um direito federal e constitucionalmente sustentado ao aborto. Se sim, tudo continuará na mesma; se não, cada Estado decidirá por si.

Outro membro do Supremo Tribunal que fez escola foi a juíza Ruth Bader Ginsburg (1933-2020). Tornou-se amiga pessoal do juiz Antonin Scalia e respeitavam-se mutuamente enquanto juristas, embora as suas posições fossem diametralmente opostas: Scalia era a grande referência dos originalistas e Ginsburg foi a grande referência dos progressistas. Nunca é demais recordar estas amizades que mostram de forma tão pertinente e actual que é possível as pessoas entenderem-se apesar de estarem ideologicamente distantes, e que há pessoas boas e bem-intencionadas em ambos os lados da questão. Sendo favorável ao desfecho do caso Roe v. Wade, Ginsburg era também intelectualmente honesta, e em 1992 reconheceu as fragilidades dos argumentos na decisão Roe v. Wade, dizendo que aqueles “limbos doutrinais tão rapidamente moldados… poderão provar-se instáveis”. Nestas palavras podemos também sentir uma crítica à inércia do poder legislativo. A questão ficaria bem resolvida se houvesse mais coragem por parte do legislador para propor uma emenda constitucional que clarificasse o assunto, num sentido ou no outro. Infelizmente, é mais fácil aos partidos políticos tentarem controlar um tribunal do que procurarem consensos que produzam a maioria necessária para se avançar com uma emenda que finalmente resolva a questão constitucional.

Permanece a questão em relação à tensão entre originalistas e activistas: não seria melhor que os juízes fizessem justiça de acordo com a lei e os políticos apenas legislassem?

Nos EUA ou em Portugal, defendo que se deve preservar o mais possível a independência entre o poder político e judicial: os juízes devem interpretar a lei tal como ela é, mesmo que pessoalmente com ela não concordem; e os políticos devem legislar, fazer emendas e alterações às leis sempre que acharem necessário. É para isso que lá estão. Tal como sugeria Hamilton, esta extrapolação de competências prejudica a separação dos poderes e, consequentemente, fragiliza o Estado de Direito.

domingo, 6 de março de 2022

Onde procurar sobre a invasão russa da Ucrânia

No meio de tanta cacofonia acerca da invasão russa à Ucrânia, parece-me útil destacar o trabalho de algumas pessoas bem informadas e com reflexões interessantes.

Estuário do Rio Dniepre

A primeira palavra tem de ser para José Milhazes, o antigo correspondente em Moscovo que conhece bem a Rússia, país onde viveu entre 1977 e 2015. É fundamental ouvir Milhazes na SIC e lê-lo no Observador, homem que está bem munido de fontes e acaba de lançar o livro “A Mais Breve História da Rússia”.

Para entender as questões geopolíticas, é imprescindível estar atento à análise frequente de Miguel Monjardino na SIC e no Expresso. No dia 11 de Dezembro, Monjardino escreveu que não podíamos excluir a possibilidade de Vladimir Putin invadir a Ucrânia e explicou porquê. Este Sábado dia 5 de Março disse que a guerra se podia tornar muito mais longa do que estava planeada.

Outro programa na SIC com informações militares e estratégicas relevantes é o Leste/Oeste de Nuno Rogeiro, que também mantém uma coluna na revista Sábado.

Já José Manuel Durão Barroso, encontrou-se 25 vezes com Vladimir Putin até ao ano de 2014, quando deixou a presidência da Comissão Europeia. Nas suas intervenções recentes na CNN e no Expresso, Barroso defendeu que Putin acha que a Rússia está mais forte depois da vitória na guerra da Síria e os Estados Unidos mais fracos depois da saída desastrada do Afeganistão.

Por outro lado, Alastair Campbell (antigo director de comunicação e estratégia do governo de Tony Blair) falou – no novo podcast que tem com Rory Stewart “The Rest is Politics” – sobre a mudança que sentiu na personalidade de Putin desde que o conheceu tímido antes de assumir a presidência da Federação Russa até quando esteve com ele numa dacha russa em 2003, em atitude dominadora, gritando com o Primeiro-Ministro britânico e tentado humilhá-lo naquele seu último encontro. Tanto Campbell como Barroso reconhecem que Putin mudou com as circunstâncias, numa crescente embriaguez de poder. Como estará o ânimo de Putin em 2022?

Vários comentadores têm lembrado um artigo que Henry Kissinger escreveu em 2014 no Washington Post: “To settle the Ucranian crisis, start at the end”. Nesse artigo escrito um mês depois dos protestos Euromaidan e um mês antes da invasão russa da Crimeia, o antigo Secretário de Estado dos presidentes Nixon e Ford tem, como é hábito, uma leitura muito interessante da História e dos equilíbrios da política. É lapidar a sua frase the test is not absolute satisfaction but balanced satisfaction, prevendo que o confronto seria inevitável se esse compromisso político não fosse alcançado. E assim foi, apesar de no meu entender ele não ter dado suficiente importância à possibilidade da destabilização vir do próprio Putin.

Jaime Nogueira Pinto é um dos que têm remetido para o artigo de Kissinger para sugerir que a Ucrânia seja como a Finlândia, e para o longo telegrama de George Kennan em 1946 prescrevendo à Ucrânia uma desejável política de contenção em relação à Rússia. Nogueira Pinto escreve no Observador e tem dois programas semanais que vale a pena ouvir, o Conversas à Quinta com Jaime Gama na Rádio Observador e o Radicais Livres com Pedro Tadeu na Antena 1.

No entanto, Eric Edelman foi embaixador americano na Finlândia e disse em entrevista a Bill Kristol que os finlandeses não gostam do termo "finlandização", e por razões justas. De facto, a aparente neutralidade finlandesa foi conseguida à custa de muito esforço e sangue derramado. Entre 1939 e 1944 a União Soviética e a Finlândia tiveram duas guerras que resultaram em cerca de 90 mil mortos finlandeses e mais de 450 mil mortos russos. A Finlândia foi neutral porque conseguiu defender a sua independência do invasor soviético e empurrá-lo de volta até quase às fronteiras originais. A URSS tinha muito mais força que a Finlândia (milhares de tanques contra 32), mas perdeu muita dela naqueles campos gelados. O tratado de paz foi assinado no interesse de ambas as partes. Ora, desde 1995 que a Finlândia é membro da União Europeia e, apesar das ameaças russas, reafirmou já este ano de 2022 a sua soberania ao reservar-se no direito de um dia pertencer à NATO se assim os finlandeses o entenderem. Para que a Ucrânia seja “como a Finlândia” como Kissinger e Nogueira Pinto propõem, primeiro a Ucrânia terá de travar a Rússia de Putin como a Finlândia travou a União Soviética de Estaline, para dessa forma ganhar de novo e a custo o seu direito à existência e à liberdade. Resta-nos esperar que, ao consegui-lo, o custo humano desta guerra não seja tão gravoso.

Stephen Kotkin é outro professor que vale a pena ouvir e que discorda do artigo de Kissinger no sentido em que defende que a Ucrânia tem hoje mais razões para ser independente do que tinha em 1991 quando a URSS ruiu. E sobre a actual invasão russa da Ucrânia, Kotkin aponta a Peter Robinson quais são as semelhanças, diferenças e implicações para a questão de Taiwan e da China.

Devo ainda recomendar a leitura dos artigos de Thomas Friedman (traduzido do New York Times) e Anne Applebaum (traduzido da Atlantic) no Expresso desta semana e a entrevista desta especialista também a Bill Kristol no seu programa Conversations.

Por fim, para ter uma noção actualizada do mapa da Ucrânia e das movimentações militares, não dispenso receber no e-mail o relatório diário muito completo do Institute for the Study of War.

domingo, 6 de fevereiro de 2022

O nosso momento Goldwater

(também publicado no Ingovernáveis e no Observador)

Olhemos para as eleições presidenciais americanas de dia 3 de Novembro de 1964: o candidato democrata Lyndon B. Johnson (LBJ) derrota o candidato republicano Barry Goldwater com 90,3% no Colégio Eleitoral, teve 61,1% contra 38,5% em votos populares, e ganhou um total de 44 dos 50 Estados. Foi a vitória mais expressiva desde James Monroe em 1820, e os resultados são ainda mais retumbantes se pensarmos como LBJ era visto. Primeiro, sabemos como é difícil substituir uma pessoa popular e LBJ era o vice-presidente que tomou o lugar do amado John F. Kennedy após o seu assassínio em Dallas em 1963; em segundo lugar, LBJ era percebido como sendo um homem demasiado ambicioso, manipulador, rude, inseguro, obcecado em deixar a sua marca na história e ser mais querido que o seu antecessor; por último, à excepção dos 8 anos de Dwight Eisenhower (1952-60), os americanos eram governados por democratas desde 1932. Contra estas probabilidades, LBJ teve uma grande vitória eleitoral e, assim sendo, só nos resta saber uma coisa: o que fez Barry Goldwater de errado?

Barry Goldwater (1909-1998), foi senador do Arizona de 1953 até 1987, quando a sua cadeira foi ocupada por John McCain. Poderíamos defini-lo politicamente como um liberal na economia com preocupações ambientais. Foi contra o New Deal de Franklin D. Roosevelt, que considerava ter atrasado a recuperação da crise económica de 1929. Pelas mesmas razões, foi contra as políticas sociais de LBJ, que acusava de ineficazes. Crítico da linha económica seguida por democratas e republicanos, Goldwater expunha as suas convicções com mais veemência do que compaixão, sacrificando a eficácia da retórica à maior determinação e firmeza de princípios. Tendo inspirado o renascimento do conservadorismo americano, Goldwater foi-se tornando mais libertário com o passar dos anos. Em 1964 enfrentou uma campanha dura contra si e não teve a capacidade de tornar apelativa a sua mensagem naquele momento.

No dia seguinte às eleições, o julgamento público foi – como escreveu William F. Buckley Jr. – “que a crítica de Goldwater ao liberalismo americano teve a sua última aparição na cena política nacional. Os conservadores podiam agora voltar para os seus pequenos covis e cantar para si próprios as suas canções nostálgicas, e talvez juntarem-se de tempos a tempos para jantares em honra de Barry Goldwater. (…) Mas claro que, 16 anos depois, o mundo assistiu surpreso à eleição presidencial de Ronald Reagan, por uma plataforma indistinguível daquela em que Barry pregou.” Só que Reagan juntava às ideias económicas de Goldwater um carisma mais atraente, tendo aproveitado bem o desânimo geral causado pela Guerra do Vietname e pelas erráticas administrações de LBJ, Nixon, Ford e Carter.


 

A campanha do CDS

O slogan conservador da campanha do CDS “Pelas mesmas razões de sempre” é, paradoxalmente, profundamente inovador na política portuguesa. Não estamos habituados a alguém que nos prometa mais do mesmo, mesmo que seja o melhor do mesmo. Faz falta pararmos um pouco para pensar neste desafio que é valorizar aquilo que de melhor temos sem ser preciso inventar grandes mudanças. Francisco Rodrigues dos Santos defendeu sem medos o valor da vida desde a concepção até à morte natural, ou a liberdade de educação contra a obrigatoriedade da polémica disciplina de Cidadania e Desenvolvimento. Mesmo assim, estas razões de sempre não cristalizaram o programa do CDS, que quis propor medidas novas e muito pertinentes como a “Via Verde da Saúde” que pretendia garantir a liberdade de escolha aos doentes que têm muito tempo de espera no sector público e, assim, poderiam ter acesso a cuidados médicos no sector particular e social.

Não milito num partido nem tenho esse plano. Nunca me cruzei com o líder cessante do CDS, que conheço só da televisão. Sou apenas um simples eleitor que gostaria de ter podido votar no PPM de Ribeiro Telles e Barrilaro Ruas nos anos 70 e 80, e que quando chegou à idade adulta foi votando umas vezes aqui, outras acolá, sempre sem grande prazer. Mas, desta vez, tive muito gosto em votar na versão do CDS que Francisco Rodrigues dos Santos nos apresentou, para mim das melhores versões que conheci ao seu partido. O CDS foi convivendo ao longo do tempo com as suas correntes conservadora, democrata-cristã e liberal. É um partido cujas correntes ideológicas eram quase tão difíceis de conciliar quanto os egos dos políticos, tendo até 3 presidentes abandonado – em momentos diferentes – este partido que lideraram. Hoje, com o aparecimento da Iniciativa Liberal e a saída de alguns libertários, talvez o CDS possa finalmente recuperar uma faceta do liberalismo que esteja em maior harmonia com as suas correntes conservadora e democrata-cristã. Por outro lado, o problema de egos subsiste – mas essa é uma característica inerente a qualquer partido.


O momento Goldwater

Como Barry Goldwater, Francisco Rodrigues dos Santos teve um terrível resultado eleitoral; mas também como ele, a sua campanha irá colher os melhores frutos uns anos mais tarde. No elogio fúnebre a Barry Goldwater, William F. Buckley Jr. escreveu que “até dava a impressão que [na campanha de 1964] ele queria alienar blocos de votantes. Ele não o fez de propósito; ele simplesmente se empenhou em explicar e tentar mostrar a integridade da arquitectura do seu pensamento”. Também o líder do CDS não terá querido afastar da ceia de dia 30 os votantes de tendência mais liberal e os de inclinação mais populista, terá antes tentado foi explicar aquilo que o seu CDS trazia de profundamente diferente àquele espaço da direita portuguesa.

Francisco Rodrigues dos Santos citou Ronald Reagan (1911-2004) em pelo menos 3 dos seus debates televisivos. Essa referência é música para os meus ouvidos, como teria sido a referência a Margaret Thatcher (1925-2013), a Jacob Rees-Mogg (1969-), a Paul Ryan (1970-) ou ao nosso injustamente esquecido Thomaz Ribeiro (1831-1901), só para nomear alguns. O que gostaria de dizer a Francisco Rodrigues dos Santos é que, para que Ronald Reagan ganhasse a presidência em 1980 e fosse o político que hoje gostamos de citar, foi necessária a estrondosa derrota de Barry Goldwater 16 anos antes, falando exactamente das mesmas ideias, essas “mesmas razões de sempre” que semeou no debate público e que abriram caminho para um dos melhores períodos da história americana. Ronald Reagan e os seus apoiantes estiveram com Barry Goldwater em 1964. O senador Barry Goldwater manteve e apurou convicções, servindo o país em ocasiões importantes como em 1974 quando terá ajudado a convencer Nixon a demitir-se, ou em 1986 quando a administração Reagan pôde contar com o seu importante contributo na legislação que reformou o Defense Department e ajudou à derrocada da União Soviética.

A quem nunca se cansa de Casablanca, the fundamental things apply as time goes by. A Francisco Rodrigues dos Santos, um muito reconhecido agradecimento pela coragem com que se lançou nesta dificílima campanha e pela integridade dos valores que defende.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Uma História de Espanha - Arturo Pérez-Reverte

(originalmente publicado no Ingovernáveis)

 

Autor: Arturo Pérez-Reverte

Livro: Una Historia de España

Editora: Alfaguara, ano de 2019, 246 páginas (há uma edição portuguesa da ASA, de 2020)

 

 

Arturo Pérez-Reverte (Cartagena, 1951) é membro da Real Academia Española mas também um dos mais lidos e populares autores espanhóis. Escreveu “Las aventuras del capitán Alatriste”, célebres enredos de capa e espada que se passam no século XVII e deram origem ao filme “Alatriste” (2006) com o fantástico Viggo Mortensen no papel de herói. Antes do sucesso literário, Pérez-Reverte viu e viveu muito como correspondente de guerra durante 21 anos (1973-1994) no Chipre, no Líbano, na Eritreia, no Saara, nas Falkland, em El Salvador, na Nicarágua, no Chade, na Líbia, no Sudão, em Moçambique, em Angola, no Golfo Pérsico, na Croácia e na Bósnia.

 

Não é o primeiro escritor a quem a guerra deu um olhar privilegiado sobre a condição humana – vêm-nos logo à memória Churchill, Hemingway, Dos Passos ou Orwell – e em Pérez-Reverte esse olhar carrega algum cinismo que procura o interesse por detrás de cada acção e as emoções que animam os personagens das histórias que conta. A sua escrita é viva, crua e directa, bruta até, cheia de vernáculo e sem pejos, o que assim dito parece fácil, mas que se torna difícil se o autor procura ser coerente e honesto no seu julgamento dos factos. Pérez-Reverte consegue-o, uma vez mais, em “Una Historia de España”. Escrito entre 2013 e 2017, este livro tem 92 pequenos capítulos que percorrem o acidentado trajecto dos povos nossos vizinhos desde a pré-História até à sua entrada na CEE em 1986, ao mesmo tempo que nós.

 

Esta é uma narrativa acompanhada de opiniões. Muito crítico, o autor vai contando histórias que ao longo dos séculos provam a sua tese, segundo a qual o maior inimigo de Espanha são os próprios espanhóis. “Até se nos humedece os olhos de emoção por reconhecer”, diz Pérez-Reverte num dos primeiros capítulos, que os espanhóis já no ano 711 “tantos séculos atrás, preferiram entregar Espanha ao inimigo em vez de deixar de lado os seus ódios e rancores pessoais” (cap. 6, págs. 28-29). No fim do livro, o autor desabafa que lhe “dá preguiça contar pela enésima vez como de novo, após conseguir empresas dignas e abrir portas ao futuro, nós os espanhóis voltamos a demolir o conseguido, tristemente fiéis a nós mesmos, com o nosso habitual entusiasmo suicida, com a ousadia da nossa intolerância, com a nossa irresponsável e arrogante frivolidade, com a nossa cómoda indiferença, no melhor dos casos. E sobretudo, com essa estúpida, contumaz, analfabeta, criminal vileza, tão espanhola, que não quer o adversário vencido nem convencido, mas exterminado. Apagado da memória” (cap. 92, págs. 245-246). Mas se o tom é quase sempre crítico, o autor também é capaz de se entusiasmar com a fibra do herói do século XI, Cid “o Campeador”; ou com a concentração de incríveis homens de letras no século de ouro (que era a prata) como Lope de Vega, Calderón de la Barca, Quevedo, Góngora ou, claro, Miguel de Cervantes; ou com a eficácia dos tercios espanhóis nos vários campos de batalha; ou com as ideias liberais e modernas trazidas pelos franceses de Napoleão, apesar dos franceses de Napoleão; ou com aquela que Arturo Pérez-Reverte considera “a maior façanha cidadã e patriótica levada a cabo por espanhóis na sua larga, violenta e triste história”: a transição para a democracia após a morte de Franco em 1975, liderada por Adolfo Suárez, respaldada pelo Rei Juan Carlos, auxiliada pela oposição, e apoiada pela confiança e ilusión da opinião pública consciente da delicadeza do momento, resultando na Constituição de 1978 referendada e aprovada por 88,54% dos eleitores.

 

Adolfo Suárez e Juan Carlos I, juntos pela democracia

Na parte que nos toca, Pérez-Reverte trata Portugal com uma consideração e respeito acima da média. Leiamo-lo em castelhano! Mencionando a crise dinástica de 1383-85, diz: “en lo que se refiere a Portugal – del que hablamos poco, pero estava ahí –, (…) Juan de Castilla, casado con una princesa portuguesa heredera del trono, estuvo a punto de dar el campanazo ibérico y unir ambos reinos; pero los portugueses, que iban a su propio rollo y eran muy dueños de ir, eligieron a otro. Entonces, Juan I, que tenía muy mal perder, los atacó en plan gallito com un ejército invasor; aunque le salió el tiro por la culata, pues los abuelos de Pessoa y Saramago le dieron una buena mano de hostias en la batalla de Aljubarrota” (cap. 15, pág. 51).

 

Mais adiante, umas páginas e umas gerações após, escreve: “Y encima, para un golpe bueno de verdade que tuvo, que fue heredar Portugal entero (como ya dije, su madre, la guapísima Isabel, era princesa de allí) (…) Felipe II cometió, si me permiten una opinión personal e intransferible, uno de los mayores errores históricos de este putiferio secular donde malvivimos: en vez de llevarse la capital a Lisboa – antigua y señorial – y dedicarse a cantar fados mirando al Atlántico y a las posesiones de América, que eran el espléndido futuro (calculen lo que sumaron el Imperio español y portugués juntos en una misma monarquía), nuestro timorato monarca se enrocó en el centro de la Península, en su monasterio-residencia de El Escorial, gastándose el dineral que venía de las posesiones ultramarinas hispanolusas (…) Felipe II nos salió buen funcionario, diestro en papeleo, y en lo personal un pavo com no pocas virtudes: meapilas pero culto, sobrio y poco amigo de lujos personales” (cap. 24, págs. 74-75).

 

Pérez-Reverte menciona-nos mais vezes, mas destaco apenas duas. Esta: “Y como mazazo final, la guerra y separación de Portugal, que, alentada por Francia, Inglaterra y Holanda (a ninguna de ellas interesaba que la Península volviera a unificarse), nos abrió otra brecha en la retaguardia. Literalmente hasta el gorro del desastre español, marginados, cosidos a impuestos, desatendidos en sus derechos y pagando también el pato en sus posesiones ultramarinas enemigos de España, com un imperio colonial propio que en teoria les daba recursos para rato, en 1640 los portugueses decidieron recobrar la independencia después de sesenta años bajo el trono español. (…) Abordada con extrema incompetencia por parte española, [a guerra] acabó con una serie de derrotas para las armas hispanas, que se comieron com sucesiva y espectacular serie de hostias en las batallas de Montijo, Elvas, Évora, Salgadela y Montes Claros. Que se dice pronto. Con lo que en 1668, tras formar el Tratado de Lisboa, Portugal volvió a ser independiente después de habérselo ganado a pulso. De todo su imperio sólo nos quedó Ceuta, que ahí sigue” (cap. 32, págs. 94-95).

 

E esta: “Hubo una guerrita cómoda y facilona contra Portugal – la guerra de las Naranjas –, el intento de toma de Tenerife por Nelson, donde los canarios le hicieron perder un brazo y le dieron, a ese chulo de mierda, una friega de campeonato, y una batalla de Trafalgar, ya en 1805, donde la poca talla política de Godoy nos puso bajo el incompetente mando del almirante gabacho Villeneuve, y donde Nelson, aunque palmó en el combate, se cobró lo del brazo tinerfeño haciéndonos comernos una derrota como el sombrero de un picador” (cap. 40, pág. 114).

 

A isenção parece ser um esforço inglório que o autor nem se esforça por alcançar. Para Arturo Pérez-Reverte o mais importante não é a equidistância mas a equanimidade, ou seja, a constância de ânimo no tratamento justo dos personagens e das situações sem, contudo, ter de ocultar o seu particular ponto de vista. Cada um de nós, pelas suas circunstâncias, olha o mundo a partir do sítio onde se encontra; e ao se afastar desse ponto à procura duma mirífica equidistância, não só não a encontra como perde aquilo que de especial tinha. “Una Historia de España” não é um trabalho historiográfico de rigor académico, e nem sequer apresenta muitas fontes para lermos mais sobre os factos relatados. Num ou noutro caso, Pérez-Reverte abusa de caricaturas para simplificar questões mais complexas, como o papel da Igreja na sociedade; poderá também, por vezes, impressionar o seu uso excessivo do calão. Mas faz parte do colorido da obra. Trata-se dum olhar literário sobre factos da História de Espanha, contando pequenas histórias e enchendo-as de emoção, e levando a sério um divertido inquérito sobre a condição humana e os traços mais particulares dos povos que compõem a Espanha.