segunda-feira, 30 de maio de 2022

A legitimidade deste Supremo Tribunal dos EUA

(também publicado no Ingovernáveis)


Os juízes do SCOTUS em 2022 - Kavanaugh, Kagan, Gorsuch, Coney Barrett, Alito, Thomas, Roberts, Breyer, e Sotomayor.

Existe a possibilidade de, nos próximos dias, o Supremo Tribunal dos EUA reverter as decisões de 1973 e 1992 que sustentam um ‘direito’ das mulheres americanas ao aborto. A propósito, tenho lido vários artigos de opinião que explicam muito bem o que está em causa. Não querendo repetir esses argumentos, gostaria de propor mais um ângulo de análise sobre as correntes de pensamento que têm dominado o Supremo Tribunal dos EUA.

Embora haja uma longa lista de razões para o considerarmos um dos piores presidentes da História dos EUA, Donald Trump tomou uma decisão incrivelmente acertada: nomeou para o Supremo Tribunal juízes ‘originalistas’, isto é, magistrados que defendem que as normas constitucionais têm de ser interpretadas com base no propósito original. O Supremo Tribunal é a última instância de justiça nos EUA; os juízes que o integram, conjuntamente, têm a competência de julgar os casos que lhes são submetidos; e devem fazê-lo à luz da Constituição dos EUA e das suas ‘emendas’. Esta Constituição, em vigor há 233 anos, é uma das mais antigas e menos extensas constituições do Mundo. A sua brevidade oferece uma boa leitura da natureza humana e do contexto cultural americano onde se insere, contribuindo para o respeito que o documento merece.

Um juiz do Supremo Tribunal dos EUA é primeiro nomeado pelo Presidente e depois confirmado pelo Senado. A partir do momento em que toma posse e faz os seus juramentos, o mandato do juiz é vitalício (salvo nos casos em que se demita, decida reformar-se ou seja destituído em consequência de um processo de impeachment). Fez esta semana 234 anos que Alexander Hamilton publicou o Federalist Paper nº 78, sobre o Poder Judiciário, onde defende a estabilidade nos cargos judiciais com a finalidade de “assegurar uma aplicação constante, correcta e imparcial das leis”, acrescentando que “nada contribuirá tanto para o sentimento de independência dos juízes – factor essencial ao fiel desempenho das suas árduas funções”. Os Federalist Papers são um conjunto de 85 magníficos artigos publicados por Hamilton, James Madison e John Jay com o objectivo de debater a bondade da Constituição dos EUA e convencer os seus compatriotas a aceitá-la.

O Federalist Paper nº 78 replica a ideia de Montesquieu de que “o Judiciário é, sem comparação, o mais fraco dos três poderes”, porque se limita a julgar e não dispõe da força do Executivo nem do poderio do Legislativo. No entanto, Hamilton alerta para um risco: “não será demais temer que os tribunais, sob o pretexto de não gostarem de determinada lei, decidam, a seu bel-prazer, modificar as intenções do legislador”. Os juízes não deverão, pois, tentar “substituir o julgamento pela vontade” fazendo predominar os seus desejos sobre os do legislador. E acrescenta: “se tal procedimento fosse válido, não seria necessário que os juízes deixassem de pertencer ao Poder Legislativo”.

A segunda metade do século XX e os primeiros anos do XXI mostraram a razão de ser desta preocupação de Hamilton. Ao longo deste tempo, alguns juízes foram adoptando uma atitude mais subjectiva perante o texto constitucional, fazendo uma interpretação pessoal e livre que adaptasse as normas ‘aos desafios dos tempos presentes’ – o que quer que isso signifique –, e por vezes torcendo argumentos de maneira a justificar as suas opiniões e sensibilidades políticas mais íntimas. Estes são os chamados “juízes progressistas” ou “juízes activistas”, que formaram as maiorias no Supremo Tribunal desde os anos 70, controlando-o. São os responsáveis por decisões polémicas como a “Roe v. Wade” que, em 1973, entendeu que havia um direito constitucional à ‘privacidade’ nos EUA, âmbito onde cabia um ‘direito ao aborto’. Por oposição, há juízes mais literais na interpretação da constituição, que tentam cingir-se ao texto e ao espírito da lei, isto é, o propósito original com que foi feita, tendo em conta a actualidade mas também os autores e a altura em que foi promulgada. Quem segue esta filosofia são os chamados “juízes originalistas”. É óbvio que há vários matizes entre estas duas atitudes ou escolas de pensamento, tantos quantos os juízes que pelo Supremo Tribunal dos EUA têm passado. Porém, é útil simplificarmos a questão desta maneira para compreendermos a principal tensão neste debate das últimas décadas.

Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e Amy Coney Barrett são os três juízes que Trump nomeou e o Senado confirmou entre 2017 e 2020. Estes três juízes substituíram dois juízes nomeados por Reagan e uma juíza nomeada por Clinton, juntando-se a outros juízes originalistas como Clarence Thomas e Samuel Alito. Como a actual composição do Supremo Tribunal prevê nove juízes, estes cinco originalistas já compõem uma maioria de 5-4, podendo nalguns casos ser de 6-3 se contarmos com a ‘previsível imprevisibilidade’ do juiz John Roberts.

Uma das razões principais pela qual Donald Trump ganhou o voto do eleitorado mais cristão não foi seguramente o seu estilo ou a sua conduta pessoal, mas o facto de ter apresentado aos eleitores uma lista de candidatos ao Supremo Tribunal dos EUA, prometendo nomear apenas pessoas que constassem dessa lista. Perante a alternativa ‘catastrófica’ que – no campo dos costumes – personificava Hillary Clinton em 2016, estes eleitores sentiram a excepcionalidade do momento e decidiram (apesar de tudo o resto) dar o seu voto a Trump. Então, foi com crescente dificuldade e oposição dos democratas que ao longo da sua administração foram nomeados os três novos juízes para o Supremo Tribunal, todos relativamente novos e na casa dos 50 anos. 

Nos anos 80, Ronald Reagan foi outro presidente que fez nomeações importantes e que equilibraram o Supremo Tribunal. Depois de em 1981 nomear a primeira juíza do Supremo Tribunal, Sandra Day O’Connor, em 1986 nomeou o ‘conservador’ William Rehnquist e o primeiro juiz italo-americano: Antonin Scalia, que era ‘originalista’ e ‘textualista’. Em 1987 tentou nomear outro originalista, Robert Bork, que, por levantar dúvidas de que a Constituição protegesse um direito à privacidade, e muito menos um direito ao aborto no âmbito do direito à privacidade entre a mulher e o seu médico, foi chumbado no Senado por 42–58, após um processo tão desgastante que deu origem a um verbo: “to bork”. Mais tarde chega ao Supremo Tribunal o juiz Clarence Thomas, também originalista. Nomeado pelo presidente George H. Bush em 1991, alcançou uma curta margem de 52-48 após uma campanha de boatos difamatórios vinda de activistas que conheciam a fragilidade constitucional de decisões como a Roe v. Wade. Como disse a feminista Florynce Kennedy sobre Clarence Thomas, “We're going to bork him. We're going to kill him politically”.

Antonin Scalia e Clarence Thomas (a partir de dentro) e Robert Bork (a partir de fora) fizeram escola; e seguiram-se outras nomeações de juízes originalistas, como Samuel Alito (nomeado por George W. Bush) e os três juízes nomeados por Trump, todos eles superando tentativas falhadas de “borking”, em especial o juiz Brett Kavanaugh que foi alvo de uma campanha de assassinato do carácter muito similar à que foi dirigida ao juiz Clarence Thomas 27 anos antes. Pouco a pouco, os últimos 4 presidentes republicanos foram nomeando para o Supremo Tribunal juízes originalistas que, finalmente, têm hoje a maioria. O caminho fez-se com dificuldade, sob uma chuva de calúnias, mentiras, e inclusivamente sob a ameaça de se acrescentar o número de juízes para mais do que os actuais nove… Por fim, e mais recentemente, com fugas de informação nunca antes vistas de documentos preparatórios do tribunal, revelação de moradas pessoais e consequentes manifestações de assédio à porta das próprias residências dos juízes e suas famílias.

Os ânimos políticos aqueceram muito nas últimas semanas com a possível reversão das decisões Roe v. Wade (1973) e Planned Parenthood v. Casey (1992), casos que reconheciam alguma protecção constitucional no ámbito federal a um eventual ‘direito de abortar’. Tenho ouvido vários comentadores americanos e portugueses a dizer que estes originalistas mentiram nas audições do Senado quando, antes da nomeação, foram interrogados sobre se respeitariam o precedente destes e outros casos. Eles responderam naturalmente que sim, que os precedentes seriam respeitados e tidos em conta, mas afirmaram também que as bases constitucionais é que são o sustento de qualquer decisão do Supremo Tribunal dos EUA. Independentemente da posição de cada um sobre as várias questões, o Supremo Tribunal irá debruçar-se apenas sobre a Constituição dos EUA e decidir se existe ou não um direito federal e constitucionalmente sustentado ao aborto. Se sim, tudo continuará na mesma; se não, cada Estado decidirá por si.

Outro membro do Supremo Tribunal que fez escola foi a juíza Ruth Bader Ginsburg (1933-2020). Tornou-se amiga pessoal do juiz Antonin Scalia e respeitavam-se mutuamente enquanto juristas, embora as suas posições fossem diametralmente opostas: Scalia era a grande referência dos originalistas e Ginsburg foi a grande referência dos progressistas. Nunca é demais recordar estas amizades que mostram de forma tão pertinente e actual que é possível as pessoas entenderem-se apesar de estarem ideologicamente distantes, e que há pessoas boas e bem-intencionadas em ambos os lados da questão. Sendo favorável ao desfecho do caso Roe v. Wade, Ginsburg era também intelectualmente honesta, e em 1992 reconheceu as fragilidades dos argumentos na decisão Roe v. Wade, dizendo que aqueles “limbos doutrinais tão rapidamente moldados… poderão provar-se instáveis”. Nestas palavras podemos também sentir uma crítica à inércia do poder legislativo. A questão ficaria bem resolvida se houvesse mais coragem por parte do legislador para propor uma emenda constitucional que clarificasse o assunto, num sentido ou no outro. Infelizmente, é mais fácil aos partidos políticos tentarem controlar um tribunal do que procurarem consensos que produzam a maioria necessária para se avançar com uma emenda que finalmente resolva a questão constitucional.

Permanece a questão em relação à tensão entre originalistas e activistas: não seria melhor que os juízes fizessem justiça de acordo com a lei e os políticos apenas legislassem?

Nos EUA ou em Portugal, defendo que se deve preservar o mais possível a independência entre o poder político e judicial: os juízes devem interpretar a lei tal como ela é, mesmo que pessoalmente com ela não concordem; e os políticos devem legislar, fazer emendas e alterações às leis sempre que acharem necessário. É para isso que lá estão. Tal como sugeria Hamilton, esta extrapolação de competências prejudica a separação dos poderes e, consequentemente, fragiliza o Estado de Direito.

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