quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Uma História de Espanha - Arturo Pérez-Reverte

(originalmente publicado no Ingovernáveis)

 

Autor: Arturo Pérez-Reverte

Livro: Una Historia de España

Editora: Alfaguara, ano de 2019, 246 páginas (há uma edição portuguesa da ASA, de 2020)

 

 

Arturo Pérez-Reverte (Cartagena, 1951) é membro da Real Academia Española mas também um dos mais lidos e populares autores espanhóis. Escreveu “Las aventuras del capitán Alatriste”, célebres enredos de capa e espada que se passam no século XVII e deram origem ao filme “Alatriste” (2006) com o fantástico Viggo Mortensen no papel de herói. Antes do sucesso literário, Pérez-Reverte viu e viveu muito como correspondente de guerra durante 21 anos (1973-1994) no Chipre, no Líbano, na Eritreia, no Saara, nas Falkland, em El Salvador, na Nicarágua, no Chade, na Líbia, no Sudão, em Moçambique, em Angola, no Golfo Pérsico, na Croácia e na Bósnia.

 

Não é o primeiro escritor a quem a guerra deu um olhar privilegiado sobre a condição humana – vêm-nos logo à memória Churchill, Hemingway, Dos Passos ou Orwell – e em Pérez-Reverte esse olhar carrega algum cinismo que procura o interesse por detrás de cada acção e as emoções que animam os personagens das histórias que conta. A sua escrita é viva, crua e directa, bruta até, cheia de vernáculo e sem pejos, o que assim dito parece fácil, mas que se torna difícil se o autor procura ser coerente e honesto no seu julgamento dos factos. Pérez-Reverte consegue-o, uma vez mais, em “Una Historia de España”. Escrito entre 2013 e 2017, este livro tem 92 pequenos capítulos que percorrem o acidentado trajecto dos povos nossos vizinhos desde a pré-História até à sua entrada na CEE em 1986, ao mesmo tempo que nós.

 

Esta é uma narrativa acompanhada de opiniões. Muito crítico, o autor vai contando histórias que ao longo dos séculos provam a sua tese, segundo a qual o maior inimigo de Espanha são os próprios espanhóis. “Até se nos humedece os olhos de emoção por reconhecer”, diz Pérez-Reverte num dos primeiros capítulos, que os espanhóis já no ano 711 “tantos séculos atrás, preferiram entregar Espanha ao inimigo em vez de deixar de lado os seus ódios e rancores pessoais” (cap. 6, págs. 28-29). No fim do livro, o autor desabafa que lhe “dá preguiça contar pela enésima vez como de novo, após conseguir empresas dignas e abrir portas ao futuro, nós os espanhóis voltamos a demolir o conseguido, tristemente fiéis a nós mesmos, com o nosso habitual entusiasmo suicida, com a ousadia da nossa intolerância, com a nossa irresponsável e arrogante frivolidade, com a nossa cómoda indiferença, no melhor dos casos. E sobretudo, com essa estúpida, contumaz, analfabeta, criminal vileza, tão espanhola, que não quer o adversário vencido nem convencido, mas exterminado. Apagado da memória” (cap. 92, págs. 245-246). Mas se o tom é quase sempre crítico, o autor também é capaz de se entusiasmar com a fibra do herói do século XI, Cid “o Campeador”; ou com a concentração de incríveis homens de letras no século de ouro (que era a prata) como Lope de Vega, Calderón de la Barca, Quevedo, Góngora ou, claro, Miguel de Cervantes; ou com a eficácia dos tercios espanhóis nos vários campos de batalha; ou com as ideias liberais e modernas trazidas pelos franceses de Napoleão, apesar dos franceses de Napoleão; ou com aquela que Arturo Pérez-Reverte considera “a maior façanha cidadã e patriótica levada a cabo por espanhóis na sua larga, violenta e triste história”: a transição para a democracia após a morte de Franco em 1975, liderada por Adolfo Suárez, respaldada pelo Rei Juan Carlos, auxiliada pela oposição, e apoiada pela confiança e ilusión da opinião pública consciente da delicadeza do momento, resultando na Constituição de 1978 referendada e aprovada por 88,54% dos eleitores.

 

Adolfo Suárez e Juan Carlos I, juntos pela democracia

Na parte que nos toca, Pérez-Reverte trata Portugal com uma consideração e respeito acima da média. Leiamo-lo em castelhano! Mencionando a crise dinástica de 1383-85, diz: “en lo que se refiere a Portugal – del que hablamos poco, pero estava ahí –, (…) Juan de Castilla, casado con una princesa portuguesa heredera del trono, estuvo a punto de dar el campanazo ibérico y unir ambos reinos; pero los portugueses, que iban a su propio rollo y eran muy dueños de ir, eligieron a otro. Entonces, Juan I, que tenía muy mal perder, los atacó en plan gallito com un ejército invasor; aunque le salió el tiro por la culata, pues los abuelos de Pessoa y Saramago le dieron una buena mano de hostias en la batalla de Aljubarrota” (cap. 15, pág. 51).

 

Mais adiante, umas páginas e umas gerações após, escreve: “Y encima, para un golpe bueno de verdade que tuvo, que fue heredar Portugal entero (como ya dije, su madre, la guapísima Isabel, era princesa de allí) (…) Felipe II cometió, si me permiten una opinión personal e intransferible, uno de los mayores errores históricos de este putiferio secular donde malvivimos: en vez de llevarse la capital a Lisboa – antigua y señorial – y dedicarse a cantar fados mirando al Atlántico y a las posesiones de América, que eran el espléndido futuro (calculen lo que sumaron el Imperio español y portugués juntos en una misma monarquía), nuestro timorato monarca se enrocó en el centro de la Península, en su monasterio-residencia de El Escorial, gastándose el dineral que venía de las posesiones ultramarinas hispanolusas (…) Felipe II nos salió buen funcionario, diestro en papeleo, y en lo personal un pavo com no pocas virtudes: meapilas pero culto, sobrio y poco amigo de lujos personales” (cap. 24, págs. 74-75).

 

Pérez-Reverte menciona-nos mais vezes, mas destaco apenas duas. Esta: “Y como mazazo final, la guerra y separación de Portugal, que, alentada por Francia, Inglaterra y Holanda (a ninguna de ellas interesaba que la Península volviera a unificarse), nos abrió otra brecha en la retaguardia. Literalmente hasta el gorro del desastre español, marginados, cosidos a impuestos, desatendidos en sus derechos y pagando también el pato en sus posesiones ultramarinas enemigos de España, com un imperio colonial propio que en teoria les daba recursos para rato, en 1640 los portugueses decidieron recobrar la independencia después de sesenta años bajo el trono español. (…) Abordada con extrema incompetencia por parte española, [a guerra] acabó con una serie de derrotas para las armas hispanas, que se comieron com sucesiva y espectacular serie de hostias en las batallas de Montijo, Elvas, Évora, Salgadela y Montes Claros. Que se dice pronto. Con lo que en 1668, tras formar el Tratado de Lisboa, Portugal volvió a ser independiente después de habérselo ganado a pulso. De todo su imperio sólo nos quedó Ceuta, que ahí sigue” (cap. 32, págs. 94-95).

 

E esta: “Hubo una guerrita cómoda y facilona contra Portugal – la guerra de las Naranjas –, el intento de toma de Tenerife por Nelson, donde los canarios le hicieron perder un brazo y le dieron, a ese chulo de mierda, una friega de campeonato, y una batalla de Trafalgar, ya en 1805, donde la poca talla política de Godoy nos puso bajo el incompetente mando del almirante gabacho Villeneuve, y donde Nelson, aunque palmó en el combate, se cobró lo del brazo tinerfeño haciéndonos comernos una derrota como el sombrero de un picador” (cap. 40, pág. 114).

 

A isenção parece ser um esforço inglório que o autor nem se esforça por alcançar. Para Arturo Pérez-Reverte o mais importante não é a equidistância mas a equanimidade, ou seja, a constância de ânimo no tratamento justo dos personagens e das situações sem, contudo, ter de ocultar o seu particular ponto de vista. Cada um de nós, pelas suas circunstâncias, olha o mundo a partir do sítio onde se encontra; e ao se afastar desse ponto à procura duma mirífica equidistância, não só não a encontra como perde aquilo que de especial tinha. “Una Historia de España” não é um trabalho historiográfico de rigor académico, e nem sequer apresenta muitas fontes para lermos mais sobre os factos relatados. Num ou noutro caso, Pérez-Reverte abusa de caricaturas para simplificar questões mais complexas, como o papel da Igreja na sociedade; poderá também, por vezes, impressionar o seu uso excessivo do calão. Mas faz parte do colorido da obra. Trata-se dum olhar literário sobre factos da História de Espanha, contando pequenas histórias e enchendo-as de emoção, e levando a sério um divertido inquérito sobre a condição humana e os traços mais particulares dos povos que compõem a Espanha.

Sem comentários: