quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Margaret Thatcher e o apartheid

(publicado originalmente no Ingovernáveis)

 


“The Crown” foi a série que me fez abrir a Netflix pela primeira vez. Escrita e produzida por Peter Morgan, já vai na 4ª temporada e 40 episódios que acompanham a vida da Rainha Isabel II do Reino Unido desde a sua coroação até 1990. Muitas conversas e acontecimentos são romanceados para efeitos narrativos, mas é uma série bem feita que nos faz rever personagens que marcaram a História, desde Winston Churchill a Margaret Thatcher, Chefes de Estado estrangeiros e vários elementos da Família Real. Destaque positivo para o guarda-roupa, os cenários e os diálogos. A 4ª temporada era por mim esperada, pois há anos que me interesso pela pessoa fascinante de Margaret Thatcher e fui comparando os episódios onde aparece com os acontecimentos descritos por Charles Moore na longa biografia oficial (3 volumes: III e III) que publicou sobre a Dama de Ferro. Foi a Senhora Thatcher quem lhe pediu para ser o seu biógrafo, deixando-se entrevistar, indicando contactos que o podiam ajudar a montar o puzzle e dando-lhe acesso a todos os documentos pessoais. A única condição de Margaret Thatcher era que os livros só saíssem depois da sua morte, dando desta maneira ao biógrafo a liberdade de fazer alguma reflexão crítica onde achasse necessário. 

No segundo volume biográfico, há um capítulo "Against Queen and Commonwealth" só sobre a questão da África do Sul que é tratada no 8º episódio da 4ª temporada da série "The Crown". Este capítulo explica detalhadamente qual era a posição de Margaret Thatcher sobre o apartheid, a Commonwealth e o interesse britânico. Segundo Charles Moore, Thatcher nunca apoiou o apartheid e foi a primeira PM britânica (1979-90) a pedir a libertação de Nelson Mandela, que estava preso desde 1964. A Senhora Thatcher estaria muito bem informada sobre o que se passava no governo da África do Sul, pois tinha relatórios dos serviços secretos que contava inclusivamente com informações de ministros do governo de P.W. Botha, de vários políticos e empresários, e do conselheiro Laurens van der Post que era amigo chegado de Thatcher e do Príncipe de Gales – foi o padrinho do Príncipe William. Estas informações e conselhos permitiram-lhe perceber que:

- o regime do apartheid era brutal, desumano e tinha de acabar;
- no entanto, havia mais de 800 mil britânicos na África do Sul, e importantes laços comerciais e financeiros a defender;
- desde que a África do Sul se tornou uma república em 1961 e desde que o seu fundador Hendrick Verwoerd montou o apartheid, que a política do país estava entregue aos descendentes dos Boers que tinham perdido as guerras com os ingleses no fim do século XIX e início do XX. Isto significava que, um confronto aberto de Thatcher com o seu interlocutor P.W. Botha poderia ser contraproducente devido aos velhos ressentimentos entre Boers e ingleses. Nesse aspecto, era um problema diferente do da Rodésia/Zimbabwe;
- Thatcher achava que devia pressionar P.W. Botha em privado, como fez, e tirar partido de ser uma dos poucos chefes de governo com quem o regime isolado de Pretória podia falar (outro era o chanceler alemão Helmut Kohl). Em privado, pressionou-o para acabar com o apartheid, para libertar Mandela, para admitir inspectores das Nações Unidas no país, etc.;
- era do interesse inglês que a necessária mudança de regime na África do Sul fosse protegida da influência soviética no ANC, que os cubanos saíssem de Angola, e que Moçambique e Botswana estivessem estáveis. 

Isto explica que Margaret Thatcher tenha agido de forma mais discreta do que muita gente gostaria, embora de forma muito práctica e influente. Aí, "The Crown" apresenta uma versão simplista, como se a Senhora Thatcher tolerasse ou até gostasse do apartheid, que pelo contrário repudiava. Já o seu marido Dennis era mais céptico em relação às capacidades de de Klerk e Mandela para uma transição pacífica. Mas Thatcher achou que de Klerk era o Gorbatchev daquele regime e que Mandela era capaz de evitar uma guerra civil. Em relação à sua resistência às sanções, tal devia-se por Thatcher considerar que elas não funcionavam e iam prejudicar mais os ingleses que os sul-africanos, mas também porque queria mostrar a Botha que podiam continuar a falar e assim pressionava-o em privado, como mostram as interessantes e duras cartas que os dois trocaram, bem como as notas que Thatcher fez das conversas que tinha com o seu homólogo sul-africano – de quem não gostava mas com quem sentia o dever de lidar. 

Por outro lado, "The Crown" parece captar bem a desconfiança de Thatcher em relação à Commonwealth, o que lhe causou atritos com a Rainha. Margaret Thatcher tinha interesse na velha Commonwealth que juntava o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia, e via com bons olhos a presença de países que queriam levar a sério a democracia, como a Índia. No entanto, impressionava-lhe que a Commonwealth fizesse vista grossa a certos regimes tirânicos e desrespeitadores dos direitos humanos, alguns dos quais eram membros da comunidade, enquanto se uniam tão facilmente para aplicar sanções e condenar a África do Sul a mais dificuldades e isolamento. Thatcher pensava que muitos dos membros da Commonwealth eram hostis ao Reino Unido e à Rainha e por vezes perguntava retoricamente aos seus ministros "porque é que continuamos a fazer parte desta organização?". A Commonwealth é um projecto onde a Rainha se empenha de forma muito pessoal, pelo que o seu desagrado a esta desvalorização de Thatcher era real.

O diferendo com a Rainha foi rapidamente ultrapassado. O grande problema foi Margaret Thatcher ter desautorizado o seu Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros Geoffrey Howe, que se sentiu humilhado e disse que Thatcher era "muito rude com a Commonwealth e muito simpática com o governo branco da África do Sul". Ele foi um dos arquitectos do complot que levou à sua destituição de líder do Partido Conservador, sendo substituída como Primeira-Ministra sem sequer ter perdido as eleições. Charles Moore, o biógrafo, dá a entender que Margaret Thatcher percebeu melhor que os seus pares e subordinados o que havia a fazer, mas nesse caminho fez alguns inimigos desnecessários que lhe custaram a liderança. 

“The Crown” é uma série de ficção de qualidade que vale a pena acompanhar, mas não a podemos tomar como uma versão definitiva da História. Em muitos casos, a série da Netflix especula sem danos de maior sobre o que terá acontecido. Noutros casos, como neste, são-nos apresentados factos errados que são facilmente desmentidos pela vasta documentação que está disponível e que o guionista preferiu ignorar. Em 2011, Meryl Streep fez um bom papel como Margaret Thatcher em “The Iron Lady”, mas é pena que o filme esteja sobretudo focado nos anos finais da sua doença de Alzheimer com declínio físico e mental. Em “The Crown”, Gillian Anderson encarna uma Senhora Thatcher curvada, de cabeça inclinada para o lado, com uma voz parecida mas muito forçada. Enquanto espero que venha um filme que faça justiça a Margaret Thatcher e a mostre no auge das suas faculdades e êxitos, resta-me recordá-la em discursos tão extraordinários como este de 1983:


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