(também publicado no Substack)
Parece que o senhor AH tratava muito bem a sua cadela. O senhor AH alimentava-a, dava-lhe festas e levava-a a passear. Apenas com esta informação, simpatizamos com o senhor AH quase de imediato. Porém, tudo se esfuma se eu lhe disser que AH é Adolf Hitler. Ao ajuizarmos a vida e o legado de Hitler, a sua forma de tratar o animal passa a ser perfeitamente irrelevante. É irritante e até ofensivo se nos detivermos por mais um segundo nessa sua característica. Temos de nos focar no essencial. No entanto, caímos com frequência nestas distracções assessórias. O que de mais relevante resultou do pensamento de Karl Marx foi a inspiração política utópica de regimes comunistas responsáveis pela morte de milhões de pessoas. O pensamento de Carl Schmitt foi útil na sustentação intelectual do regime nazi em que participou sem arrependimento, mesmo depois do seu partido ser responsável pelo Holocausto, pelo Porajmos e por tantas outras atrocidades. É claro que Marx e Schmitt produziram muito pensamento, e que algumas das suas ideias mantêm o interesse. Nem que seja para compreender a História, é importante conhecê-los.
Nos últimos anos aumentaram naturalmente as críticas à ideia do “fim da História” de Francis Fukuyama, acusando-o de ingenuidade na defesa da democracia liberal ocidental como a “forma final do governo humano”. Essa crítica é compreensível face à actual crise das democracias. O problema é que entre as boas críticas a Fukuyama também há correntes da moda que reabilitam os autores que deram sustentação filosófica às ideologias que definitivamente foram derrotadas pelas democracias liberais: o nazismo e o comunismo. Do passado foram ressuscitados velhos fantasmas, seja Marx evocado por Thomas Piketty e pelas publicações da esquerda radical, ou a direita iliberal a colocar Carl Schmitt nas páginas da European Conservative e da Crítica XXI. A coerência é admirável, mas a teimosia nunca combinou bem com o erro.
Digeridos pelo tempo e pela História, Schmitt e Marx curiosamente encontram no actual Partido Comunista Chinês um denominador comum, com o influente académico Jiang Shigong a tentar compatibilizar as teorias políticas de ambos. Do filósofo nazi, Shigong aproveita as teorias sobre o poder autoritário e absoluto, o necessário uso da violência, o tratamento do adversário como inimigo. Ao filósofo comunista, vai buscar algumas ideias do materialismo histórico. Como fez Mao Zedong, Shigong dispõe dos aspectos teóricos que são úteis à manutenção da ditadura do partido comunista e adapta-os à realidade chinesa.
Conhecemos as consequências fatais do pensamento destes e outros autores que continuamos a ver ser difundidos por ambos os extremos do nosso espectro político. Num contexto em que as democracias liberais estão novamente sob pressão e a ser postas à prova, a reabilitação destes autores tem como evidente objectivo a fragilização das nossas instituições democráticas. O debate é sempre bem-vindo em democracia, mesmo até quando a põe em causa. Contudo, devemos estar bem cientes que invocar estes autores é um “abre-te sésamo” que nos permite aceder às maiores tragédias políticas do século XX, correndo o risco de reabrir a caixa de Pandora. O potencial destruidor dos autoritarismos do século XXI é agravado pelas novas tecnologias de controlo e manipulação das massas. E se hoje algumas críticas à democracia liberal são inspiradas pelos velhos Marx e Schmitt, nesse caso Churchill continua a ter razão que “a democracia é a pior forma de governo, à excepção de todas as outras”.
A maior parte das pessoas não conhece bem a vida e obra de Karl Marx, e muito menos a de Carl Schmitt. No entanto, podemos observar as nossas rotundas de Norte a Sul poluídas com cartazes exigindo coisas aos ricos, aos ciganos e aos imigrantes. A velha luta de classes e as novas lutas de classes mostram como o ódio dirigido a determinados grupos sociais faz com que os extremos se confundam. Mas há pessoas que conhecem muito bem a vida e a obra de Marx, bem como a de Schmitt. Eu não os conheço ao ponto de saber se estes autores tinham cães e se os tratavam bem. Mas estudei-os o suficiente para compreender o que procuram os autoritários de hoje quando os citam. Nós já vimos este filme.
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