quarta-feira, 13 de junho de 2018

Não me estou nas tintas para o papel


(Originalmente publicado no "Jacaré parado vira mala" no dia 7 de Abril de 2018)

Há quem se sinta nu quando sai à rua sem relógio no pulso ou se vestiu as calças sem o cinto. Outros (tantos!) entram em curto-circuito se o telemóvel ficou esquecido algures. Eu há quatro coisas que trago sempre comigo: fio ao pescoço com medalhas e cruz ao peito, terço no bolso, caneta e bloco de notas A6 na mão. É assim há muitos anos, e mais recentemente trago também um pequeno canivete que a Margarida me deu. Ando, portanto, bem protegido com as armas da fé, pena e espada.

Cidade de Samarcanda
Agora estou a ver se gasto o meu actual bloco de notas, que não é grande espingarda pois absorve demasiado a tinta permanente e a sua aderência torna a minha letra desarmoniosa. Para as refinadas civilizações do Extremo Oriente que apreciam a arte da caligrafia, como a Chinesa e a Japonesa, o calibre do papel importa tanto como a qualidade da tinta. Também para as gentes da Ásia Central e do Médio Oriente, que durante tantos séculos viram as suas terras serem atravessadas pelas rotas da seda, o papel é um produto apreciado. No século XV, auge das antigas rotas comerciais terrestres, o Bibliotecário de Mashad (Pérsia) Simi Nishapuri dizia que o melhor papel para a caligrafia era produzido em Damasco (hoje na Síria), Samarcanda (hoje no Uzbequistão), Bagdade (hoje no Iraque) e Amol (hoje no Irão). Segundo ele, o papel de outros lugares seria por regra “grosseiro, poroso e impermanente”.

Este saber só me traz inquietação, pois não dá jeito ir a esses lugares tão instáveis buscar papel como deve ser e hoje em dia a rota da seda parece estar mais concentrada em oleodutos e na captação de investimento chinês para infraestruturas do seu império em plena expansão. As rotas da seda, muito por culpa dos nossos antepassados navegadores, passaram a ser mais marítimas do que terrestres. Grande parte destas cidades históricas da Ásia Central entraram em decadência e nunca recuperaram o esplendor daqueles dias.

Mas lá por não conseguir o papel de Samarcanda, não vou deixar de passar a estar mais atento aos blocos e resmas que compro. Não quero que a pobre qualidade do papel prejudique a forma ou até o conteúdo de uma carta que escrevi. Se sou tão exigente com o vinho, o chá ou o tabaco, não vejo razão para não querer bom papel, tintas e canetas para dar à escrita a importância que ela merece e que me retribui com tanto prazer!

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