terça-feira, 23 de janeiro de 2018

As minhas viagens pelo chá

(Originalmente publicado no "Chás Andorinha Blog" no dia 6 de Dezembro de 2017)
(com republicação editada na "Alameda Digital" no dia 22 de Dezembro de 2017)


As primeiras foram da sala para a copa e da copa para a sala, era eu criança e ficava a ver a Mãe a escaldar o bule e a preparar as chávenas, o pão e os scones, as bolachas de água e sal, a manteiga, o doce de tomate e o mel. Um pouco mais crescido, já com alguns escudos no bolso, a viagem era já fora de casa mas ainda dentro de Lisboa, e acompanhando os Pais e os irmãos ia à Casa Pereira na Rua Garrett e comprava chá para no Natal dar às tias. Passou a ser o meu presente para as minhas tias cada ano, não sei se as tias deram conta no meio de tantos presentes e sobrinhos…

Casa Pereira – R. Garrett 38, Chiado
Portugal: sempre gostei de chá, chá a sério, e não tanto das infusões de outras plantas aromáticas. Em casa cresci a tomá-lo sem açúcar, muito raramente com um farrapinho de leite para o arrefecer e, de vez em quando, a garganta doía-me e eu juntava ao chá uma colherinha de mel e uma lasquinha da casca do limão. Mas o chá que na altura encontrávamos em Portugal, mesmo se em folhas soltas para fugir à sem-saboria das saquetas, era todo muito igual: pretos e verdes, parecidos entre si e de qualidade mediana.

Qatar: o primeiro contacto que tive com uma cultura de chá diferente foi há uns anos no Qatar, onde fui recebido logo no hotel com um copo de prata gravada com motivos árabes que continha um chá quente e ao mesmo tempo refrescante, tal como é hábito nestes países onde as pessoas se socorrem da menta para momentaneamente esquecer todo aquele calor. Assim se faz aquele que por nós é chamado de “chá marroquino”: chá verde (1/5 a 1/3) e menta (2/3 a 4/5). Esta bebida pode ser encontrada no Norte de África, no Médio Oriente e em zonas da Ásia, sendo comum no mundo árabe. A mistura é muito simples e pode facilmente ser replicada em sua casa.

Igreja do Santo Rosário, Dhaka
Bangladesh: em Bengala encontrei outra cultura do chá. No Bangladesh o chá que se consome é sobretudo produzido na região de Sylhet, no nordeste do país, perto do Assam (Índia) que tem chás parecidos e muito interessantes. Fui ao Bangladesh mais que uma vez e percorri-o de lés a lés, viajando em condições climatéricas e sanitárias que não ouso pormenorizar diante de pessoas mais impressionáveis. Muitas vezes fui de noite em autocarros velhos que quase se desconjuntavam a cada buraco que a estrada de lama nos oferecia… e a todo o momento, em cada paragem nocturna ou diurna, o chá preto de Sylhet com leite e açúcar era presença constante, e por vezes também lhe juntavam especiarias para ficar uma espécie de “chai”. É uma bebida quentinha, muito aromática e reconfortante. Só que, quando o chá é bom, faz pena juntar-lhe outros sabores que lhe tapam o aroma original.  Mas concordo que muitas vezes o chá não é lá grande coisa, e aí então faça-se como os ingleses ensinaram e ponha-se leite e açúcar para disfarçar todos os seus defeitos!

Açores: mais tarde, casei com a minha querida mulher. De lua-de-mel passámos por São Miguel, nos Açores, uma ilha idílica onde estão os campos ondulados de onde se abastecem marcas como a Gorreana, o Porto Formoso e o Chá Canto. Lá visitámos as plantações, lindas, com os azuis do mar e do céu a costurar o horizonte com as fiadas de arbustos de chá verdinhos… Vale bem a pena visitar estas plantações e casas, e tomar um chá a olhar para aquele pequeno pedaço de paraíso. Também no Minho houve experiências com a cultura do chá no século XIX, entretanto extintas, e penso que é importantíssimo para o património cultural de Portugal que nos Açores se continue a plantar, colher, processar e comercializar chá.

No entanto, não sendo açorianos, a minha mulher e eu decidimos experimentar outra forma muito portuguesa de comercializar o chá: cruzar mares e oceanos para os ir buscar às melhores plantações que há do outro lado do mundo!

Casa de chá com vista, Longjing
China: mais tarde, por razões de trabalho, comecei a ter que ir à China com bastante frequência. Mas que choque, mas que diferença! Os chás que lá provei eram uma completa novidade para mim, e não tinham quase nada a ver com os que sempre encontrei nas lojas de Lisboa. Como é possível que a partir das mesmas folhas de Camellia sinensis se façam chás de aromas tão diversos sem lhes juntar nenhum outro elemento? E porque é que estes chás nos foram vedados no “ocidente”? Se era assim em Hong Kong e Macau, como seria nas regiões produtoras? Eu estava muito impressionado com estes chás e tinha que tirar a limpo todas estas questões. Para investigar as respostas, visitei várias regiões do Sul da China onde se produzem chás muito especiais. Cada um desses sítios daria (e dará!) um artigo, e este já vai longo. Mas aqui fica um pequeno apontamento sobre algumas regiões que me marcaram:

Plantação de chá, Longjing
Zhejiang: o único Museu Nacional do Chá na China, com selo oficial, fica nos campos de Longjing, província de Zhejiang. Cruzando o famoso Lago Oeste da cidade imperial de Hangzhou, um pouco mais adiante, numa planície rodeada de lindas montanhas, está o museu em plena plantação de chá atravessada por um pitoresco ribeiro. É um museu muito completo que vale bem a visita, tem bastante informação, boas lojas, livraria e casas de chá para experimentar o ex-libris deste lugar: Longjing é um chá verde delicadíssimo, feito com pequenas folhas inteiras e espalmadas, e muito tenras após a infusão. A partir destas folhas também se faz o molho de um dos pratos típicos regionais: os suculentos camarões em molho de chá verde. Vale a pena visitar as aldeias de Longjing 龙井, Mei Jia Wu 梅家, as inúmeras estátuas budistas das grutas de Fei Lai Feng 飞来峰, o Lago Oeste 西湖com os seus imponentes pagodes e a cidade de Hangzhou 杭州市.

Caixas de munições ou canteiros?
Fujian: desta província chegavam quase todos os (poucos) chás da China que se podiam encontrar numa loja especializada de Lisboa nos anos 90. Em Fujian, há duas zonas especialmente conhecidas pela produção de chá: a região do Monte Wuyi 武夷山 de onde provêm bons chás oolong e conhecidos chás pretos como o Da Hong Pao e o fumado Lapsang Souchong, chás estes que estariam entre os que foram atirados ao mar na revolta do Boston Tea Party em 1773; e a região de Anxi 安溪, que se intitula de “capital chinesa do chá” por produzir excelentes chás brancos (a par de Fuding 福鼎, mais a Norte) e por ser a origem do extraordinário chá oolong Tie Guan Yin, um dos meus favoritos. Para além destes lugares, tenho saudosas memórias de Xiamen 门市 (ou Amoy) e da pequena ilha de Gulangyu 鼓浪屿 em frente, com as velhas moradias de mercadores e diplomatas e que outrora foi chamada de “a milha quadrada mais rica do mundo” tal era o volume de negócios que ali se fazia entre chineses e ocidentais. Uma palavra especial para Quanzhou 泉州 (a que nós, portugueses, antigamente chamávamos de Chincheu), onde se terá inventado o cetim e onde começava uma das mais célebres rotas da seda. Hoje é uma cidade portuária com cerca de 7 milhões de pessoas, moderna mas cheia de História e de património. Estive 4 dias nesta cidade, visitei monumentos e templos de várias religiões, pedalei vários quilómetros de bicicleta, subi ao Monte Qingyuan 清源山 com belas vistas sobre a cidade, não parei de me surpreender com a cultura daquela cidade milenar e fiz bons amigos. Hei-de voltar.  
Estátua de Lao Zi, Quanzhou

Plantação de chá, Yunnan
Yunnan: nas bordas dos Himalaias, a província montanhosa do Yunnan é onde tudo começou no que toca ao chá. Diz a lenda que a nossa bebida preferida foi descoberta em 2737 a.C. nesta região pelo Imperador Chinês Shen Nong. Por aqui passou a mítica “Antiga Rota do Chá e dos Cavalos”, que levava aos tibetanos chá da China e trocava-o por cavalos do Tibete segundo as necessidades chinesas. O chá mais conhecido do Yunnan é o Pu’er (temos 2), que se pode apresentar em folhas soltas ou prensado em discos ou pequenos tijolos para facilitar o transporte, e envolvido em papel que não raras vezes é artisticamente decorado. Trata-se de um chá escuro, fermentado, que se pode guardar como se vinho de cave se tratasse, pois por vezes aperfeiçoa os seus sabores com o tempo, ganhando suavidade e uma maior elegância de aromas. Os chás de Menghai e Xishuangbanna西双版 têm boa fama, mas é a terra de Pu’er 普洱市que dá o nome ao chá. As plantações dos nossos chás Pu’er ficam num lugar de difícil acesso, um pouco mais a Norte, a uma hora de Eshan 峨山 e a cerca de 2300m de altitude. Numa próxima oportunidade quero visitar os lugares históricos de Lincang 临沧市, Dali 大理 e Lijiang 丽江市, que são sítios dos quais ouvi falar muito bem. Mas marcou-me pela beleza natural quando visitei Shilin 石林, a “floresta de pedra” impressionante, não muito longe da capital de província Kunming 昆明. Seja no campo ou na cidade, fica também na memória a quantidade de pessoas que, de minorias étnicas e falando línguas próprias, vão na rua vestidas com coloridos trajes foclóricos.


Junco à noite, Hong Kong
Macau e Hong Kong: Já perdi a conta das vezes visitei Hong Kong e Macau, foi certamente mais que uma mão cheia delas. São lugares diferentes mas próximos e em constante relação. Por serem economias abertas ao mundo, aqui podem provar-se os melhores chás da China e de outros lugares como a Índia, o Ceilão, a Formosa, o Japão… são cidades onde os melhores produtos encontram as merecidas montras para serem expostos. As casas de chá na região de Cantão merecem profunda análise sociológica, pois ali se podem observar as interacções entre gerações, as hierarquias sociais, os costumes, a hospitalidade e a etiqueta. Todo o bom português deve visitar Macau e Hong Kong pelo menos uma vez na vida. Mas se gostar de chá, para além de procurar boas lojas e casas de chá, vale a pena visitar a Casa Cultural de Chá em Macau e a Flagstaff House Museum of Tea Ware em Hong Kong, que mostra ao visitante peças excepcionais como bules, xícaras e demais instrumentos e obras de arte relacionadas com a cultura do chá.

Casa de Nagatani Soen, Uji
Japão: o Japão é uma história diferente. Este povo, talvez pela sua condição insular, teve tempo e a oportunidade de olhar para si com mais cuidado e meditou durante séculos sobre as coisas de que dispunham. Não encontro outra razão que explique como a cultura do chá foi ritualizada e elevada a um estado artístico cuja estética não encontra entre nós rival. A cerimónia do chá é a imagem mais óbvia, mas o cultivo, a colheita, o processamento, tudo é feito com sabedoria e beleza. A leitura de Wenceslau de Moraes e laços de amizade já existentes precipitaram o destino: tínhamos de trazer também para Portugal os chás especiais do Japão.

Quioto: escrevia em 1905 o Cônsul de Portugal em Kobe acerca das plantações de chá em Uji 宇治que “mercê da riqueza do torrão, que de então até hoje o chá daquele sítio tem sido celebrado como o melhor de todo o Império; dele exclusivamente se serve o imperador” (Wenceslau de Moraes, in “O Culto do Chá”). Este chá tinha de estar em Portugal! Visitei as plantações de Uji, perto de Quioto, e mandei-o vir.

Aprendendo em Umegashima
Shizuoka: fui igualmente a outras plantações e fábricas extraordinárias, nomeadamente na região de Shizuoka 静岡県. Não é qualquer marca que vos pode apresentar um “sencha” do Monte Fuji tão bom como o nosso; ou que arrisque uma experiência como o Aires, um chá preto fumado como o chinês Lapsang Souchong, mas feito no Japão e substituindo a agressividade do pinho pela elegância da madeira de cerejeira… Mas o meu preferido é o chá verde da mais alta plantação do Japão: Umegashima 梅ケ島, a 1000m de altitude. Não voltarei a subestimar a capacidade de um chá me emocionar. Eu já provei muitos, mas este mexeu realmente comigo e cometemos a loucura de o trazer também. Temos todo o Japão numa xícara.

Mundo: também sei de vários sítios onde se planta bom chá e ainda não fui. Sonho por exemplo em ir a Uva na Ilha do Ceilão (Sri Lanka) conhecer suas plantações e provar aquele chá preto local tão consistente e elegante, ou a Darjeeling (Índia) para ver os seus famosos jardins de chá, e conto também um dia visitar as montanhas da Ilha Formosa (Taiwan) onde se produzem chás oolong extraordinários. No que toca a chá a minha curiosidade não tem fim, mas sinto-me privilegiado por tudo o que já pude ver.

Um óptimo presente de Natal
As histórias do chá são para mim roteiros de viagens, nem seja ao final do dia quando me sento no conforto da sala e visito uma memória antiga, que surge qual D. Sebastião por entre o nevoeiro e os aromas que se libertam da xícara de chá que elevo. O chá, como os livros, leva-nos a correr mundo sem serem necessárias as inconveniências de descolar e aterrar num avião. Daí o lema que nos acompanha:

Chás Andorinha – viaje pelo requinte!

Os nossos Chás Andorinha são mais que simples chás, cada um tem uma história e uma origem especial. Sugerimos assim que neste Natal dê chá, que é um presente tão bom! Para saber mais acerca da história de cada chá, por favor consulte: http://chasandorinha.pt/#chas

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