(Originalmente publicado no "Chás Andorinha Blog" no dia 6 de Dezembro de 2017)
(com republicação editada na "Alameda Digital" no dia 22 de Dezembro de 2017)
As primeiras foram da sala para a copa e da copa
para a sala, era eu criança e ficava a ver a Mãe a escaldar o bule e a preparar
as chávenas, o pão e os scones, as bolachas de água e sal, a manteiga, o doce
de tomate e o mel. Um pouco mais crescido, já com alguns escudos no bolso, a
viagem era já fora de casa mas ainda dentro de Lisboa, e acompanhando os Pais e
os irmãos ia à Casa Pereira na Rua Garrett e comprava chá para no Natal dar às
tias. Passou a ser o meu presente para as minhas tias cada ano, não sei se as
tias deram conta no meio de tantos presentes e sobrinhos…
Casa Pereira – R. Garrett 38, Chiado
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Portugal: sempre gostei de chá, chá a sério, e não
tanto das infusões de outras plantas aromáticas. Em casa cresci a tomá-lo sem
açúcar, muito raramente com um farrapinho de leite para o arrefecer e, de vez
em quando, a garganta doía-me e eu juntava ao chá uma colherinha de mel e uma
lasquinha da casca do limão. Mas o chá que na altura encontrávamos em Portugal,
mesmo se em folhas soltas para fugir à sem-saboria das saquetas, era todo muito
igual: pretos e verdes, parecidos entre si e de qualidade mediana.
Qatar: o primeiro contacto que tive com uma cultura
de chá diferente foi há uns anos no Qatar, onde fui recebido logo no hotel com
um copo de prata gravada com motivos árabes que continha um chá quente e ao
mesmo tempo refrescante, tal como é hábito nestes países onde as pessoas se
socorrem da menta para momentaneamente esquecer todo aquele calor. Assim se faz
aquele que por nós é chamado de “chá marroquino”: chá verde (1/5 a 1/3) e menta
(2/3 a 4/5). Esta bebida pode ser encontrada no Norte de África, no Médio
Oriente e em zonas da Ásia, sendo comum no mundo árabe. A mistura é muito
simples e pode facilmente ser replicada em sua casa.
Igreja do Santo Rosário, Dhaka
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Bangladesh: em Bengala encontrei outra cultura do
chá. No Bangladesh o chá que se consome é sobretudo produzido na região de
Sylhet, no nordeste do país, perto do Assam (Índia) que tem chás parecidos e
muito interessantes. Fui ao Bangladesh mais que uma vez e percorri-o de lés a
lés, viajando em condições climatéricas e sanitárias que não ouso pormenorizar
diante de pessoas mais impressionáveis. Muitas vezes fui de noite em autocarros
velhos que quase se desconjuntavam a cada buraco que a estrada de lama nos
oferecia… e a todo o momento, em cada paragem nocturna ou diurna, o chá preto
de Sylhet com leite e açúcar era presença constante, e por vezes também lhe
juntavam especiarias para ficar uma espécie de “chai”. É uma bebida quentinha,
muito aromática e reconfortante. Só que, quando o chá é bom, faz pena
juntar-lhe outros sabores que lhe tapam o aroma original. Mas concordo que muitas vezes o chá não é lá
grande coisa, e aí então faça-se como os ingleses ensinaram e ponha-se leite e
açúcar para disfarçar todos os seus defeitos!
Açores: mais tarde, casei com a minha querida mulher.
De lua-de-mel passámos por São Miguel, nos Açores, uma ilha idílica onde estão
os campos ondulados de onde se abastecem marcas como a Gorreana, o Porto
Formoso e o Chá Canto. Lá visitámos as plantações, lindas, com os azuis do mar
e do céu a costurar o horizonte com as fiadas de arbustos de chá verdinhos…
Vale bem a pena visitar estas plantações e casas, e tomar um chá a olhar para
aquele pequeno pedaço de paraíso. Também no Minho houve experiências com a
cultura do chá no século XIX, entretanto extintas, e penso que é
importantíssimo para o património cultural de Portugal que nos Açores se
continue a plantar, colher, processar e comercializar chá.
No entanto, não sendo açorianos, a minha mulher e
eu decidimos experimentar outra forma muito portuguesa de comercializar o chá:
cruzar mares e oceanos para os ir buscar às melhores plantações que há do outro
lado do mundo!
Casa de chá com vista, Longjing
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China: mais tarde, por razões de trabalho, comecei
a ter que ir à China com bastante frequência. Mas que choque, mas que
diferença! Os chás que lá provei eram uma completa novidade para mim, e não
tinham quase nada a ver com os que sempre encontrei nas lojas de Lisboa. Como é
possível que a partir das mesmas folhas de Camellia sinensis se façam chás de
aromas tão diversos sem lhes juntar nenhum outro elemento? E porque é que estes
chás nos foram vedados no “ocidente”? Se era assim em Hong Kong e Macau, como
seria nas regiões produtoras? Eu estava muito impressionado com estes chás e
tinha que tirar a limpo todas estas questões. Para investigar as respostas,
visitei várias regiões do Sul da China onde se produzem chás muito especiais.
Cada um desses sítios daria (e dará!) um artigo, e este já vai longo. Mas aqui
fica um pequeno apontamento sobre algumas regiões que me marcaram:
Plantação de chá, Longjing
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Zhejiang: o único Museu Nacional do Chá na China,
com selo oficial, fica nos campos de Longjing, província de Zhejiang. Cruzando
o famoso Lago Oeste da cidade imperial de Hangzhou, um pouco mais adiante, numa
planície rodeada de lindas montanhas, está o museu em plena plantação de chá
atravessada por um pitoresco ribeiro. É um museu muito completo que vale bem a
visita, tem bastante informação, boas lojas, livraria e casas de chá para
experimentar o ex-libris deste lugar: Longjing é um chá verde delicadíssimo,
feito com pequenas folhas inteiras e espalmadas, e muito tenras após a infusão.
A partir destas folhas também se faz o molho de um dos pratos típicos
regionais: os suculentos camarões em molho de chá verde. Vale a pena visitar as
aldeias de Longjing 龙井, Mei Jia Wu 梅家坞, as inúmeras estátuas budistas das grutas de Fei
Lai Feng 飞来峰, o Lago Oeste 西湖com
os seus imponentes pagodes e a cidade de Hangzhou 杭州市.
Caixas de munições ou canteiros?
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Fujian: desta província chegavam quase todos os
(poucos) chás da China que se podiam encontrar numa loja especializada de
Lisboa nos anos 90. Em Fujian, há duas zonas especialmente conhecidas pela
produção de chá: a região do Monte Wuyi 武夷山 de onde provêm bons
chás oolong e conhecidos chás pretos como o Da Hong Pao e o fumado Lapsang
Souchong, chás estes que estariam entre os que foram atirados ao mar na revolta
do Boston Tea Party em 1773; e a região de Anxi 安溪县, que se intitula de “capital chinesa do chá” por
produzir excelentes chás brancos (a par de Fuding 福鼎,
mais a Norte) e por ser a origem do extraordinário chá oolong Tie Guan Yin, um
dos meus favoritos. Para além destes lugares, tenho saudosas memórias de Xiamen
厦门市 (ou Amoy) e da pequena ilha de Gulangyu 鼓浪屿 em frente, com as velhas moradias de mercadores
e diplomatas e que outrora foi chamada de “a milha quadrada mais rica do mundo”
tal era o volume de negócios que ali se fazia entre chineses e ocidentais. Uma
palavra especial para Quanzhou 泉州 (a que nós, portugueses,
antigamente chamávamos de Chincheu), onde se terá inventado o cetim e onde
começava uma das mais célebres rotas da seda. Hoje é uma cidade portuária com
cerca de 7 milhões de pessoas, moderna mas cheia de História e de património.
Estive 4 dias nesta cidade, visitei monumentos e templos de várias religiões,
pedalei vários quilómetros de bicicleta, subi ao Monte Qingyuan 清源山
com belas vistas sobre a cidade, não parei de me surpreender com a cultura
daquela cidade milenar e fiz bons amigos. Hei-de voltar.
Estátua de Lao Zi, Quanzhou
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Plantação de chá, Yunnan
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Yunnan: nas bordas dos Himalaias, a província
montanhosa do Yunnan é onde tudo começou no que toca ao chá. Diz a lenda que a
nossa bebida preferida foi descoberta em 2737 a.C. nesta região pelo Imperador
Chinês Shen Nong. Por aqui passou a mítica “Antiga Rota do Chá e dos Cavalos”,
que levava aos tibetanos chá da China e trocava-o por cavalos do Tibete segundo
as necessidades chinesas. O chá mais conhecido do Yunnan é o Pu’er (temos 2),
que se pode apresentar em folhas soltas ou prensado em discos ou pequenos
tijolos para facilitar o transporte, e envolvido em papel que não raras vezes é
artisticamente decorado. Trata-se de um chá escuro, fermentado, que se pode
guardar como se vinho de cave se tratasse, pois por vezes aperfeiçoa os seus
sabores com o tempo, ganhando suavidade e uma maior elegância de aromas. Os
chás de Menghai 海县e Xishuangbanna西双版纳 têm boa fama, mas é a terra de Pu’er 普洱市que
dá o nome ao chá. As plantações dos nossos chás Pu’er ficam num lugar de
difícil acesso, um pouco mais a Norte, a uma hora de Eshan 峨山 e a
cerca de 2300m de altitude. Numa próxima oportunidade quero visitar os lugares
históricos de Lincang 临沧市, Dali 大理 e
Lijiang 丽江市, que são sítios dos quais
ouvi falar muito bem. Mas marcou-me pela beleza natural quando visitei Shilin 石林,
a “floresta de pedra” impressionante, não muito longe da capital de província
Kunming 昆明. Seja no campo ou na cidade, fica também na memória a
quantidade de pessoas que, de minorias étnicas e falando línguas próprias, vão
na rua vestidas com coloridos trajes foclóricos.
Junco à noite, Hong Kong
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Macau e Hong Kong: Já perdi a conta das vezes
visitei Hong Kong e Macau, foi certamente mais que uma mão cheia delas. São
lugares diferentes mas próximos e em constante relação. Por serem economias
abertas ao mundo, aqui podem provar-se os melhores chás da China e de outros
lugares como a Índia, o Ceilão, a Formosa, o Japão… são cidades onde os
melhores produtos encontram as merecidas montras para serem expostos. As casas
de chá na região de Cantão merecem profunda análise sociológica, pois ali se
podem observar as interacções entre gerações, as hierarquias sociais, os
costumes, a hospitalidade e a etiqueta. Todo o bom português deve visitar Macau
e Hong Kong pelo menos uma vez na vida. Mas se gostar de chá, para além de
procurar boas lojas e casas de chá, vale a pena visitar a Casa Cultural de Chá
em Macau e a Flagstaff House Museum of Tea Ware em Hong Kong, que mostra ao
visitante peças excepcionais como bules, xícaras e demais instrumentos e obras
de arte relacionadas com a cultura do chá.
Casa de Nagatani Soen, Uji
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Japão: o Japão é uma história diferente. Este povo,
talvez pela sua condição insular, teve tempo e a oportunidade de olhar para si
com mais cuidado e meditou durante séculos sobre as coisas de que dispunham.
Não encontro outra razão que explique como a cultura do chá foi ritualizada e
elevada a um estado artístico cuja estética não encontra entre nós rival. A
cerimónia do chá é a imagem mais óbvia, mas o cultivo, a colheita, o
processamento, tudo é feito com sabedoria e beleza. A leitura de Wenceslau de
Moraes e laços de amizade já existentes precipitaram o destino: tínhamos de
trazer também para Portugal os chás especiais do Japão.
Quioto: escrevia em 1905 o Cônsul de Portugal em
Kobe acerca das plantações de chá em Uji 宇治que “mercê da riqueza do
torrão, que de então até hoje o chá daquele sítio tem sido celebrado como o
melhor de todo o Império; dele exclusivamente se serve o imperador” (Wenceslau
de Moraes, in “O Culto do Chá”). Este chá tinha de estar em Portugal! Visitei
as plantações de Uji, perto de Quioto, e mandei-o vir.
Aprendendo em Umegashima
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Shizuoka: fui igualmente a outras plantações e
fábricas extraordinárias, nomeadamente na região de Shizuoka 静岡県.
Não é qualquer marca que vos pode apresentar um “sencha” do Monte Fuji tão bom
como o nosso; ou que arrisque uma experiência como o Aires, um chá preto fumado
como o chinês Lapsang Souchong, mas feito no Japão e substituindo a
agressividade do pinho pela elegância da madeira de cerejeira… Mas o meu
preferido é o chá verde da mais alta plantação do Japão: Umegashima 梅ケ島,
a 1000m de altitude. Não voltarei a subestimar a capacidade de um chá me
emocionar. Eu já provei muitos, mas este mexeu realmente comigo e cometemos a
loucura de o trazer também. Temos todo o Japão numa xícara.
Mundo: também sei de vários sítios onde se planta
bom chá e ainda não fui. Sonho por exemplo em ir a Uva na Ilha do Ceilão (Sri
Lanka) conhecer suas plantações e provar aquele chá preto local tão consistente
e elegante, ou a Darjeeling (Índia) para ver os seus famosos jardins de chá, e
conto também um dia visitar as montanhas da Ilha Formosa (Taiwan) onde se
produzem chás oolong extraordinários. No que toca a chá a minha curiosidade não
tem fim, mas sinto-me privilegiado por tudo o que já pude ver.
Um óptimo presente de Natal
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As histórias do chá são para mim roteiros de
viagens, nem seja ao final do dia quando me sento no conforto da sala e visito
uma memória antiga, que surge qual D. Sebastião por entre o nevoeiro e os
aromas que se libertam da xícara de chá que elevo. O chá, como os livros,
leva-nos a correr mundo sem serem necessárias as inconveniências de descolar e
aterrar num avião. Daí o lema que nos acompanha:
Chás Andorinha – viaje pelo requinte!
Os nossos Chás Andorinha são mais que simples chás,
cada um tem uma história e uma origem especial. Sugerimos assim que neste Natal
dê chá, que é um presente tão bom! Para saber mais acerca da história de cada
chá, por favor consulte: http://chasandorinha.pt/#chas
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