segunda-feira, 20 de março de 2017

Impressões de uma viagem à província de Fujian 福建 (partes I, II, III e IV) - JPVM

(Textos originalmente publicados no "Jacaré parado vira mala" nos dias 18 e 19 de Fevereiro, e 05 e 13 de Março de 2017)


Sábado, dia 18 de Fevereiro de 2017
Lisboa

O meu dia começa com um toque de despertador às 3 da manhã. Já tinha tomado um banho na noite anterior para ir um pouco mais fresco nesta longa viagem ao extremo Oriente. Arrasto-me do quentinho de casa para o vento cortante da avenida com uma grande mala e uma mochila nas costas, adapto-me aos elementos da Natureza inspirado pela tartaruga e sua carapaça, e espero por um táxi que me leve ao aeroporto.

O avião da Xiamen Air 厦门航空 prestes a descolar de Amesterdão para Xiamen

Esta minha ida à China tem três propósitos: conhecer a província de Fujian e provar os seus chás mais emblemáticos; trocar ideias e mundividências com os meus amigos de lá; e treinar o meu Chinês Mandarim. Em casa ficam a minha querida mulher e filhos, que desta vez não podem vir comigo. Foi um sacrifício que teve importância ao longo dos dias, mas sem o qual esta aventura não teria sido possível.

O primeiro contacto com a China faz-se ainda em Amesterdão, após curta escala e mudança de avião nesse aeroporto. A companhia é a Xiamen Air e as hospedeiras, perfeitamente sincronizadas e vestidas de azul, fazem uma curta vénia com a cabeça antes de nos contar as instruções de segurança. Ainda passo os olhos pelas revistas Le Point Spectator, estico-me dando graças a Deus por ter três lugares vazios só para mim e, sem dar por ela, o peso da noite abate-se sobre mim na forma do segundo sono mais profundo.


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Domingo, dia 19 de Fevereiro de 2017
Xiamen 厦门

Chego a Xiamen no dia em que cumpro 31 anos de vida feliz. Os meus amigos asiáticos são os primeiros a dar-me os parabéns por virtude do fuso horário, mas são também os últimos parabéns que recebo por causa do bloqueio da China continental ao Facebook e à Google. Preferi não me deixar incomodar por essas restrições para aproveitar melhor o que a China tem para dar, e prometi também não tirar demasiadas fotografias com o meu iPhone novo (apesar da nitidez ser muito superior à do antigo), nem captar imagens sem primeiro contemplar aquilo que me despertou a atenção desprovido de quaisquer lentes ou ecrãs de intermedeio.

Como podem as pessoas dizer que visitaram um lugar quando na verdade não descolaram os seus olhos do telemóvel só para tirar umas centenas ou milhares de fotografias que em nada superam as que já se encontram na internet? Pondo o telefone no bolso, elevo o olhar e posso encarar as pessoas como deve ser - apesar de tantas estarem também absorvidas pelos mundos que aquela meia-dúzia de centímetros quadrados luminosos lhes oferece.

As praias da ilha e o seu mar vigiados pelas torres gémeas de Xiamen

Apesar de não ser a maior cidade (apenas 1,8 milhões de pessoas) nem a capital da província, a ilha de Xiamen é a sede comercial e financeira de Fujian. Antigamente conhecida no Ocidente por Amoy, Xiamen foi visitada por vários navegadores e viajantes, tendo os Portugueses sido os primeiros europeus a fazer a grande viagem marítima no ano de 1541. Em Chinês escrito, cada caractere ou ideograma corresponde a um significado que se exprime em Mandarim falado com apenas uma sílaba. Assim, Xiamen 厦门 é um nome composto por Xià 厦 (palácio ou mansão) e Men 门 (porta ou portal), e significa “porta do palácio”.

O hotel onde fiquei chama-se Millennium Harbourview Hotel Xiamen e pertence a uma cadeia hoteleira que já experimentei noutra viagem à China. Não se pode comparar este hotel citadino ao artístico Millennium Resort Hangzhou, que fica nas viçosas colinas que se desenvolvem desde o Lago Oeste de Hangzhou 杭州西湖e do Rio Qiantang 钱塘江em direcção à aldeia de Longjing 龙井, famosa pelo seu chá verde com o mesmo nome. Oh, que boas memórias dessa viagem também! Mas voltando a Xiamen, o hotel é bastante aceitável e está numa zona onde confluem a baixa da cidade com os seus arranha-céus típicos da finança, uma ruas de prédios de 3 andares em estilo colonial e com boas lojas nos rés-do-chãos, e um bairro de ruas mais apertadas com muita vida e variedade gastronómica. Lá, de noite, pude experimentar uns magníficos pescoços de patos picantes, que me deram num saco de plástico como se se tratassem de guloseimas. Protestei que era muito, que não conseguia comer tudo aquilo naquele momento. “Não se preocupe”, explicaram-me, “pode ir comendo ao longo dos próximos três dias, que isso aguenta bem”.

Canhão Krupp do século XIX, o maior do género, no forte Huli Shan 胡里山

Durante o dia passeei pela orla costeira, cheia de crianças e adultos que brincavam nas praias de areia clara. O clima e a flora são sub-tropicais, com palmeiras e coqueiros com côcos enormes e verdes. Fui a uma aldeia de pescadores onde comi tofu picante. Sabe menos mal que a pestilência do seu cheiro, mas de facto não é um alimento que me entusiasme. Valeu o picante que disfarçou aquele gosto desagradável do tofu e tornou suportável a sua consistência algo esponjosa. Mais adiante, pedi um côco com uma palhinha que me soube bem de refrescante que foi. E em pouco tempo estávamos no antigo forte Huli Shan 胡里山, agora transformado em museu da guerra, em especial dos canhões. Entre algumas dezenas de canhões de ferro das dinastias Ming 明朝(1368–1644) e Qing 清朝 (1644–1911), a principal atracção deste museu era um enorme canhão Krupp com cerca de 87.1 toneladas de peso, 13.9 metros de comprimento e um alcance de fogo na ordem dos 19.8 quilómetros. Considerado o maior canhão costeiro do mundo do século XIX ainda completo, esta peça de artilharia foi encomendada pela China à Alemanha, que recebeu alguns soldados na fábrica da Krupp em Essen para treino especializado com o novo brinquedo. Anos mais tarde, o canhão Krupp viria a afundar um navio japonês, facto muito celebrado no museu.

Antigas caixas de munições, agora canteiros para flores

Diante deste forte em Xiamen, a apenas 2 quilómetros de distância, está a ilha de Kinmen 金门 (ou Quemoy) que é administrada pela República da China 臺灣 (Taiwan). Qualquer chinês da República Popular da China chama a Taiwan de “a nossa Província de Taiwan” e o assunto continua a ser muito delicado e emotivo para eles. Para se ver um chinês triste, basta perguntar-lhe acerca de Taiwan. Em ambas as crises do Estreito de Taiwan nos anos 50 do século XX trocaram-se tiros de canhão de um lado para o outro, e com os restos de bala que encontravam na praia os habitantes de cada lado derretiam o metal para fazer facas que ainda hoje são vendidas nas lojas de recuerdos. E entretanto, grandes caracteres de um lado e do outro do canal fazem propaganda comunista ou nacionalista, consoante a ilha de que falamos. Os ânimos entre as duas partes continuam em ebulição.

O trânsito no Estreito de Taiwan: navios de recreio, pesca, comércio e guerra

Depois de me banquetear na cantina da Universidade de Xiamen, peço desculpa aos meus amigos e retiro-me para o hotel onde caio redondo na cama, com muito sono para acertar. Durmo bastante, na esperança de aguentar melhor o dia seguinte. O mais complicado destas viagens é lidar com o jet lag. Apenas acordo para jantar, dar uma volta ao quarteirão para ajudar à digestão, e voltar ao hotel para dormir o resto da noite, que o dia seguinte promete.


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2ª feira, dia 20 de Fevereiro de 2017
Gulang Yu 鼓浪屿

Acordei bem cedo para apanhar um ferry boat para Gulang Yu 鼓浪屿, uma pequena ilha diante de Xiamen 厦门que na primeira metade do século XIX chegou a ser considerada por “a milha quadrada mais rica do Mundo”. Na verdade, a ilha é tão pequena que não chega a uma milha quadrada, tendo apenas cerca de 2 quilómetros quadrados - talvez a tivessem medido na maré baixa! Nessa altura, os mercadores ingleses, de outros países europeus e do Japão usavam Xiamen como principal entreposto comercial com a China continental, onde construíram grandes fortunas à conta do chá, das sedas, do ópio, da prata e do ouro, e de tantos outros produtos que a China oferecia e procurava. Os mercadores ocidentais habitavam na pequena ilha de Gulang Yu, que era conveniente por ser mais pequena e oferecer um ambiente mais protegido para as suas famílias enquanto eles se deslocavam a Xiamen para os negócios do dia-a-dia. Gulang Yu foi importante até à Primeira Guerra do Ópio (1839-42), e perdeu a sua influência a partir do momento em que os ingleses se mudaram para Hong Kong mais a Sul e aí estabeleceram o seu novo centro de negócios com a China. Mas o encanto desta ilha permanece intacto.

Junto à praia, o antigo Consulado Britânico de Gulang Yu 鼓浪屿

Mal o barco aportou à ilha, cerca de três dezenas de pessoas esperavam os passageiros, exibindo certificados mais ou menos oficiais em como seriam bons guias turísticos para o périplo. No entanto, não lhes ouvi uma só palavra de Inglês. E olhando em redor, notei que o único ocidental (se é que esse adjectivo me pode assentar) era eu. Ao longo do dia fui ouvindo os vários transeuntes a advinhar de onde é que eu seria: Yīngguó rén 英国人 (inglês)?; Mĕiguó rén 美国人 (americano)?; Èluósī rén 俄罗斯人 (russo)? Quando me apetecia, respondia que não, que era um Pútáoyá rén 葡萄牙人 (português) e ríamos juntos; e noutras vezes deixei-os estar a especular e ríamos cada um para seu lado.

Um dos padrões típicos das fachadas nesta zona da China

A primeira coisa que se faz numa ilha é subir ao seu monte mais alto para avistar os seus contornos geográficos e fazer um plano de exploração. Foi o que fiz. Atravessei várias ruas de boas casas em tijolo pintado com riscas pretas a fazer padrões muito interessantes e decorativos; falei com vendedores de rua que mostravam as suas flautas de cerâmica, peças ornamentais feitas de ossos de animais e imensas pérolas de todos os feitios e cores; e fui ao alto do monte chamado de Sunlight Rock 日光岩, onde se tem uma belíssima panorâmica sobre toda a ilha. Se se tiver o dia inteiro para dedicar a este lugar, o esforço da subida é sem dúvida bem recompensado.

As casas históricas de Gulang Yu 鼓浪屿 perante os arranha-céus de Xiamen 厦门

Para além da extraordinária beleza de Gulang Yu 鼓浪屿 (cujo significado literal é “ilhéu das ondas”), com suas praias de areia dourada, exuberante vegetação sub-tropical e numerosos palacetes de arquitectura colonial, algo não batia muito certo neste lugar tão turístico. Depois de percorrer a ilha toda a passo e de me deparar com interessantes particularidades como a arte de aproveitar espinhas de peixe para elaborar quadros decorativos, ou como um museu à beira-mar com os fantásticos pianos que um mercador de Taiwan coleccionou ao longo da sua vida, eu continuava sem perceber o que faltava ali naquele quadro idílico. Prestava atenção aos pequenos pormenores das acções do Homem e da Natureza, e escapava-me aquela diferença tão elementar que só reparei ao dirigir-me para o cais dos barcos: Gulang Yu é uma ilha sem carros. E de facto, não só deles não precisa como, pela dimensão que tem, ganha em não os ter.

Atrás da Catedral Católica de Gulang Yu, várias noivas maquilham-se para sessão fotográfica

No fim do dia, volto à muito maior ilha de Xiamen, olhando a partir do barco a bela ilha de Gulang Yu a ficar mais longe e a acender luzes enquanto o céu escurece camada a camada. Vou jantar com um amigo perto do meu hotel, num cruzamento de ruas muito movimentadas. Instalamo-nos numa varanda sem grades de um rés-do-chão alto, sentados em frágeis cadeiras de plástico, enquanto o dono do restaurante nos traz a comida, os pauzinhos e um rolo de papel higiénico para irmos limpando as mãos quando necessário. Olho para a rua e vejo aqui e acolá mulheres a bater palmas. A quem estariam a aplaudir? Será que avistaram algum famoso que admiram? “Não”, explicou-me o amigo local, “estão apenas a chamar a atenção das pessoas para os seus restaurantes”.

Antiga casa colonial, hoje uma livraria

Estes relatos escritos e fotográficos só não são capazes de transmitir determinadas sensações que apenas lá estando podemos entender, como os barulhos especiais daquelas ruas, cheiros como aquele perfume do tabaco indonésio a ser fumado ali ao lado, ou o prazer de chegar ao hotel para descansar os músculos das pernas depois de um dia de caminhada que me proporcionou vistas tão ricas e interessantes.

Adeus Gulang Yu 鼓浪屿, até à próxima!


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3ª feira, dia 21 de Fevereiro de 2017
Anxi 安溪

Levantei-me cedo para tomar o pequeno-almoço e fazer o check-out do hotel, onde aproveito para deixar alguma bagagem que não vou precisar nos próximos dias, e saio de Xiamen 厦门 bem cedo no comboio. A próxima paragem é Quanzhou 泉州, que é uma cidade maior que Xiamen, apesar de hoje em dia ser bastante menos internacional. Com efeito, durante os dias em que lá estive não me cruzei com um único ocidental. A viagem de 90 quilómetros fez-se rapidamente, num comboio confortável que apanhei após passar em vários controlos de segurança. Mal cheguei, fui direito ao hotel da Xiamen Air para fazer o check-in e deixar bagagens. O sítio é bastante conveniente por ficar localizado numa das avenidas centrais de Quanzhou. Desfiz as malas e descansei cerca de 20 minutos antes de abandonar de novo a cidade, apanhando um pequeno autocarro para Anxi 安溪, conhecida por Zhōngguó chá dōu 中国茶都 - a Capital Chinesa do Chá. Em abono da verdade, devo dizer que não considerei o mercado de chá de Anxi propriamente mais importante do que os mercados que já havia visitado noutras ocasiões em Hangzhou 杭州 na província de Zhejiang 浙江 ou em Kunming 昆明 na província de Yunnan 云南.

O mercado de Anxi 安溪, com a venda de chá Tieguan Yin 铁观音

Os chineses chamam de “aldeia” a Anxi, terra que tem prédios de 20 andares e aproximadamente a mesma população que Viseu. Anxi é especialmente conhecida por um chá Oolong 乌龙茶 chamado de Tieguan Yin 铁观音 e pelo chá branco 白茶 de muito boa qualidade. No que toca ao chá, uma moda mais recente na China é o chamado Chén Pí Chá 陈皮茶, que consiste em encher uma pequena casca de tangerina desidratada com chá branco 白茶 ou com chá Pu’er 普洱. A tangerina recheada de chá vai direita para o bule e confere as estes chás um aroma cítrico suave e levemente adocicado. Esta ligação entre os citrinos e o chá é antiga e muito popular na cultura inglesa por exemplo através do tradicional Earl Grey, que consiste em chá - normalmente preto, mas não necessariamente - aromatizado com os óleos essenciais da bergamota ou com a flor da laranjeira. Apesar de reconhecer que tais chás aromatizados podem ser muito agradáveis, eu tendo a preferir perder-me na imensidão de aromas que um bom chá puro nos pode oferecer por si só.

A tangerina Chén Pí 陈皮, neste caso recheada de chá branco 白茶

Mas tento não ser dogmático e gosto de provar tudo o que seja bem feito, com autenticidade e bons sabores. Após cheirar, tocar e provar dezenas de chás, depois de contactar vários produtores e aprender tanto acerca dos seus processos muito especiais, fiz algumas compras e trouxe amostras para provar mais tarde com a minha querida mulher em Portugal. Voltei a Quanzhou com o cair da noite, deixei as minhas compras no hotel, e decidi ir jantar à zona mais antiga da cidade. No caminho é inevitável reparar nas inúmeras lojas de roupa, tecnologia, jóias e decoração que cobrem ambas as margens das ruas. Lojas bem apresentadas e de marcas boas, que por momentos nos iludem que estamos em Paris ou em Londres até realizarmos que nesta terra ninguém fala outra língua para além do Mandarim ou os demais dialectos chineses.


Rua de Quanzhou à noite, com silhueta do Templo de Kaiyuan 开元寺

A dado momento, decidi entrar numa livraria à procura do “Clássico do Chá” 茶经 (chá jīng) de Lu Yu 陆羽. Não havia, mas encontrei outros livros que me interessaram, desde obras sobre chá e pintura a livros belissimamente ilustrados para os meus queridos filhos. Somo os preços de capa e preparo-me para pagar 175 RMB à saída (cerca de 23 EUR), onde para meu espanto a senhora que me atendia pegou nos livros e os pesou numa balança, cobrando-me afinal apenas 58 RMB (uns 8 EUR). Nunca antes eu tinha pago por literatura a peso! E tão boa, e tão barata... confesso que desejei ter mais uma mala de viagem para encher daqueles livros, e mais uma estante em casa para os acolher condignamente. Continuo a caminhada, vou andando e comendo uma coisa aqui, outra acolá, escolhendo à vista e sem ideia do que seja aquilo que os vendedores expõem na rua. À luz da lua e dos candeeiros, Quanzhou 泉州 parece ser uma cidade encantadora. E é com esse pensamento que volto para o hotel e descanso, com vontade de a poder ver melhor no dia seguinte, à luz do sol.


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(continua...)

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