segunda-feira, 20 de março de 2017

a moeda (resposta ao LBM) - JPVM

(Texto originalmente publicado no "Jacaré parado vira mala" no dia 13.02.2017, em resposta a este texto de dia 01.02.2017 de Luís Bessa Monteiro, também publicado no "Jacaré parado vira mala")


Venho desta forma responder ao comentário muito interessante do meu caro amigo Luís BM. E deixem-me dizer desde já que é por isto que gosto de escrever ao seu lado e do João MP, pois assim posso aprender e ter o prazer das boas conversas.

Se o Luís diz não ser especialista em matéria de políticas monetárias, certamente por modéstia, eu então devo afirmar com toda a frontalidade que muito menos especialista serei. Mas como bom ignorante que sou, não deixo de exprimir alguns pensamentos e dúvidas que tenho.

Concordo que enfrentaremos várias dificuldades ao sair do euro. A primeira dificuldade de todas é que estamos há mais de 15 anos sem a experiência política e até pessoal de lidar com uma moeda própria que esteja talhada à medida da nossa realidade. E digo à medida da nossa realidade e não das nossas necessidades, porque as necessidades se devem adaptar à realidade e não o contrário. Quando relegamos a realidade para segundo plano,Pandora trata do resto. Pandora - a que dá tudo - é a Eva da mitologia Grega, que de Zeus recebe um grande jarro como presente de casamento, e com ele a advertência de que nunca o deverá abrir. Mas como seria de apostar, Pandora não resiste à curiosidade e abre esse jarro, comummente conhecido por "a caixa de Pandora", saindo dali para o mundo coisas tão terríveis como a morte, a doença, o desespero, a maldade, a velhice, o ódio, a violência, a guerra e os demais males que vagueiam pelo mundo. Acrescenta Sir Roger Scruton em "As vantagens do pessimismo" (Quetzal Editores 2011) que Pandora fechou imediatamente a caixa, e ficou lá dentro uma prenda - a prenda da esperança: o único remédio, mas também o flagelo final. A esperança, quando bem entendida, é o único remédio; mas facilmente se torna no pior dos males. Ora, a esperança deve não só ir bem acompanhada pela Fé e pela Caridade, como também ser muito bem dirigida para Aquele que realmente nos salva e que nunca nos irá deixar ficar mal. Mas quando pomos esperança na ilusória perfeição das soluções humanas, este triste engano acaba por perpetuar em nós as tormentas dos outros males que saíram da caixa de Pandora, potenciando desse modo o seu impacto destruidor.

Assim, a nova moeda nacional só poderá ser boa se alicerçada na realidade de Portugal, da sua economia e reservas. Devemos fugir da utopia do euro e protegermo-nos das utopias de futuras políticas monetárias, sejam elas keynesianas ou de outra estirpe. E as reservas que dão maior garantia, apesar de tudo, continuam a ser as de ouro. Segundo o World Gold Council, Portugal tem cerca de 382,5 toneladas de ouro, sendo o 12º país com maiores reservas de ouro no mundo. Seria muito bom que pudéssemos voltar a crescer economicamente, a diminuir a nossa dívida pública e a reforçar o nosso tesouro, pois essas são as melhores (senão únicas) garantias internacionais que temos. O dinheiro em Portugal - a nova moeda - deveria depender destes três factores e ser constitucionalmente muito bem protegido das tentações políticas, por forma a atingir credibilidade junto de nós e dos estrangeiros. A partir do momento em que o Governo começa desenfreadamente a brincar às políticas monetárias, a imprimir mais moeda e a mexer nas taxas de juro, tudo está estragado. Os objectivos podem ser os melhores, por exemplo os de fomentar o investimento ou o consumo... mas e quem poupa uma vida toda para ter uma boa velhice e deixar uma boa herança aos seus? O que lhes dizer quando o dinheiro que amealharam com tanto custo passa a valer menos?

Tenho a noção que estou a entrar em território Comanche, pois aqui também há perigos que devem ser acautelados para evitar a concentração de poder em agiotas e usurários tão bem representados por Shakespeare na personagem de Shylock n'O Mercador de Veneza. É por isso talvez necessário encontrar uma via média, pouco intervencionista mas suficientemente atenta para agir quando necessário. Os Gregos Antigos descobriram que um pouco de dívida pode aumentar a riqueza: o devedor fica mais rico porque usa uma propriedade que não tinha; e o credor fica mais rico porque irá colher juros sobre o empréstimo sem perder essa sua propriedade. Mas por outro lado, demasiada dívida torna-se insustentável: o devedor fica mais pobre porque se endividou a um ponto que não consegue pagar e tem de penhorar os seus bens; e o credor fica mais pobre porque não consegue cobrar o que lhe é devido. O clássico problema político é definir o que aqui é "pouco", "muito" e "demasiado", e encontrar uma boa solução para estas situações.

Vem a propósito lembrarmos a história de Sólon e da primeira bolha do crédito de que há memória. Em 594 a.C. Atenas estava à beira duma guerra civil entre credores e devedores por causa de uma situação em que o pagamento das dívidas se tornou insustentável. Chamaram Sólon para apresentar uma solução e a sua proposta terá sido a de imprimir mais moeda e desvalorizar o dracma em cerca de 27%. Esta proposta aliviou os devedores, que ficaram com mais liquidez para pagar as dívidas, e os credores que receberam os pagamentos - apesar de estes valerem menos. E se olharmos para bolhas do crédito mais recentes como a Grande Depressão ou a actual crise (desde 2007 até hoje), vemos que o padrão se repete: desvalorização da moeda e redistribuição da propriedade (riqueza). E depois há uma variável que depende do tipo de pessoas que está no governo nessa altura: ou se deixa os credores abrirem falência e os devedores ficam com a dívida parcial ou totalmente perdoada (mas com menos uma entidade a quem pedir dinheiro no futuro); ou se protege os credores e o Estado paga-lhes essa dívida, seja subindo os impostos ou contraindo mais dívida pública, atirando o desta forma os problemas para o futuro.

A partir daqui, compreendemos que muita dívida é uma catástrofe; e que um pouco de dívida bem pode aumentar a riqueza, mas também não aumenta o dinheiro. Ou seja, a qualidade de vida aumenta porque se consumiu mais, o dinheiro circulou mais e por mais gente, e fizeram-se coisas que de outra forma não seria possível. No entanto, o dinheiro é um bem escasso que não se reproduz pela circulação. Reproduz-se pela emissão de mais moeda que, se não for feito com extremo cuidado e uma inquebrável dependência da realidade produtiva e económica do país, traduz-se numa desvalorização da moeda que perde credibilidade e força a par das poupanças. Se não tivermos cuidado e esta realidade não for tida em conta, geram-se as bolhas especulativas que invariavelmente causam impacto negativo na economia real, ou seja, na vida das pessoas. A estabilidade dos preços, a criação de emprego e o incentivo ao consumo bem podem ser causas nobres, mas a natureza da moeda tem de estar ligada à realidade das reservas e bem blindada à prova de preferências políticas do momento. E uma reserva credível deverá rica em ouro, o metal cujo valor é historicamente do mais estável que podemos encontrar. Não terá sido por outra razão que a Alemanha deu ordem para que se repatriasse mais rapidamente do que planeado boa parte das reservas de ouro que tem em Nova Iorque e Paris, tal como foi noticiado na passada semana. E se a Alemanha prepara uma eventual saída do euro, não será prudente que nos preparemos também?

Voltando às reservas, desta forma a nossa nova moeda teria real valor. Não teria porventura o valor que desejamos a cada momento. Mas teria o valor que qualquer pessoa lhe reconhece. Talvez não fosse a melhor moeda para as políticas socialistas que nos fazem viver às custas dos nossos filhos. Mas talvez por isso fosse uma âncora de realidade que nos permite evitar mais sacrifícios vãos.

Finalmente, o Luís toca no tema dos sistemas eleitorais. É um tema belíssimo que tem tudo a ver com esta concepção de moeda por se tratar de uma aproximação da política às pessoas e por visar a devolução de poder às mesmas. Mas este texto já vai longo e vejo vantagem em prosseguir esse debate num outro post.

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