domingo, 13 de novembro de 2011

tensão no cinema


Ia dando em pancadaria.

“La Source des Femmes” é um filme passado em Marrocos que eu vi no cinema em Bruxelas, anteontem pela primeira vez e ontem pela segunda. É uma fita polémica mas cheia de bom humor sobre a luta das mulheres muçulmanas pela sua dignidade e respeito enquanto pessoas. Da primeira vez, eu queria apenas ver o filme, que é realmente muito interessante, tem uma fotografia lindíssima e vale a pena. Passa-se numa aldeia metida numa cova entre as montanhas do Atlas e todas as paisagens são magníficas. Mas, na noite seguinte, voltei ao cinema por uma razão completamente diferente. Fui lá para estar com mais atenção à reacção do público.



Anteontem fui ver o filme a de Brouckère, mesmo em frente ao Hotel Metropole *****, bem no centro de Bruxelas. Eram 19h30m e o cinema estava à pinha. Trata-se da história de uma aldeia sem água nem electricidade perdida nas montanhas em Marrocos, onde os homens desempregados se sentam no café durante o dia para conversar e passar o tempo, enquanto as mulheres têm de subir a acidentada montanha para ir buscar água, tal como é tradição. O percurso é duro e as quedas podem acontecer com facilidade, tendo provocado por várias vezes a perda dos bebés entre as mulheres grávidas que fazem esse caminho. Leila, a heroína desta história, quer mudar esta situação e convence as outras mulheres a fazerem frente aos maridos com uma “greve de amor”. A partir daí o filme desenrola-se com várias peripécias de fazer rir e chorar.

No fim do filme é que se armou a grande confusão. Eu já tinha reparado durante o filme em vários risos e comentários fora do tempo e do tom. Só que, quando o painel ficou preto, levantaram-se duas mulheres sem véu mas que pareciam ser muçulmanas e que começaram a gritar e a pedir contas a três belgas que estavam sentadas ao meu lado, que responderam insultando-as com a maior indiferença e arrogância possíveis. Os insultos cresceram em espiral por ambos os lados e foram ficando cada vez mais racistas. Em poucos segundos toda a multidão tinha descolado os seus olhos dos créditos finais do filme, fixando-se naquela cena a meio da sala, mesmo ao meu lado. No escuro, os dentes arreganhados daquelas pessoas impunham ainda mais cautelas. Apercebi-me que a situação só podia piorar enquanto não chegassem os seguranças, e dei dois passos para trás, afastando-me do foco da raiva. Um mouro lá de trás gritou qualquer coisa e atirou uma lata de Coca-Cola vazia, que rasou as belgas e embateu na fila da frente. Um belga lá à frente levantou-se de peito feito, abriu os braços para o mouro e disse abanando a cabeça “Monsieur”. A tensão era enorme, o cinema estava prestes a tornar-se num violento campo de batalha e o palco da realidade tinha há muito ultrapassado em emoções qualquer ficção que ali se costuma projectar. Foi nesse justo momento vieram os seguranças e as pessoas dispersaram entre comentários e insultos, mas sem escalar mais na via da violência. A mulher que tinha pedido contas às belgas, dizia enquanto saía: “esta foi uma sala má”.

Fiquei a pensar em tudo isto que se tinha passado, no filme, nas reacções, nas pessoas. Teria eu apanhado aquela “sala má” só por coincidência? Ou será que aquele clima tenso se iria reproduzir novamente se eu voltasse no dia seguinte? Só havia uma maneira de saber, tinha de ir ver “La Source des Femmes” uma vez mais.

Voltei ontem ao mesmo cinema, desta vez à sessão das 22h10m. Embora a sala não estivesse tão cheia como no dia anterior, pode dizer-se que estava bastante composta.

Notei que ao longo do filme houve muita agitação entre os muçulmanos, ajeitavam-se por tudo e por nada naquelas cadeiras, parecia que não conseguiam encontrar uma posição que lhes fosse confortável. Ao mesmo tempo ia ouvindo os mesmos comentários inconvenientes por parte dos europeus. Os telemóveis tocavam, pessoas iam saindo e entrando na sala. Foi uma sessão cheia de ruídos e risos nervosos. Numa cena mais íntima do filme, quando perto do fim a “greve de amor” termina, um homem lá atrás levanta-se bruscamente, fecha a cadeira com estrondo, e abandona a sala a barafustar com o punho cerrado no ar. Ao meu lado, um casal belga de meia-idade comentava paternalista e arrogantemente que estes muçulmanos ainda não tinham aprendido a comportar-se. Eu respondi “shhh”, como se quisesse ver o filme pela primeira vez, mas na realidade não queria era problemas ao meu lado de novo. No fim, fui dos primeiros a sair para ficar a ver a cara das pessoas quando chegassem à luz da entrada. O incómodo era evidente em quase todas as pessoas. Visto em Portugal, talvez este filme fosse só interessante e divertido. Mas aqui percebi porque “La Source des Femmes” é um grande filme (de Radu Mihaileanu e com a belíssima Leila Bekhti).



Desde que cheguei à Bélgica que noto uma grande desconfiança entre Europeus de origem e Muçulmanos, de parte a parte. Há um medo mútuo que está muito à flor da pele, e que não raras vezes se manifesta com sustos, gestos de aversão e até de violência (física e verbal). E ao mesmo tempo, vejo nesses árabes e mouros um interesse nos assuntos sociais e políticos e um certo esforço de integração que não encontro por exemplo nos chineses. Mas esse é outro assunto.

Ainda não sei bem por onde devem começar os Europeus e os Muçulmanos para se entenderem, mas também sei que, nestas situações, não há nada como ser-se Português.


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