terça-feira, 20 de janeiro de 2009

vox populi - II

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Zé Carlos, 47 anos (hoje com 50), sem-abrigo desde os 43, cabelo grisalho e espesso, contava como a sua mulher Cecília o tinha trocado por um colega de trabalho. Com ela, deixou dois filhos: Frederico, 13 anos, que nasceu com paralisia e é “muita lindo”; e a Daniela, de 11 anos.

Noutras vidas, Zé Carlos trabalhou na construção civil, foi pintor de paredes, e carpinteiro também. É artista, desenha bem, tem esboços de quadros em carvão sobre papel, semi-amarrotados e com pingos de água – talvez da chuva, ou quem sabe das lágrimas...

Suas paixões? A Natureza!, responde logo. E depois, a História de Arte, os romances históricos, a História da Idade Média, Biologia, o Surrealismo (os seus esboços são também surrealistas, eu vi-os, e de qualidade), Jerónimo Bosch. Os olhos de Zé Carlos iluminavam-se...
– Ah, e sou doido pelo Tio Patinhas, principalmente as histórias feitas p’lo Carl Barks, e as do Don Rosa! São uma maravilha! Conheces?
– Sim, sim! Muito boas.

Acredita em Deus mas diz não rezar as orações tradicionais. Respondi-lhe que as suas orações não eram menos valiosas para Deus, e ele abriu a confiança num sorriso da boca aos olhos, mostrando pela primeira vez a falta de dentes.

Tem a auto-estima em baixo, diz-se feio. Mas é culto e autodidata. Não se dá com os outros sem-abrigo, a sua companhia é Deus e o cão, que se chama Rainbow (a sua dificuldade na dicção fez-me perguntar 3 vezes se se tratava do Rambo, até ele me explicar que era um arco-íris).

O Zé Carlos falou um dia com a assistente social, dizendo-lhe que queria refazer a sua vida. Esta respondeu que era difícil ajudá-lo por ele não ser toxicodependente. Perguntou numa entristecida ironia, de voz embargada:
– Não me orientas um charrinho que m’ajude? É que senão, não me safo...

Quando disfarçadamente bocejou a primeira vez, quis deixá-lo descansar, e despedimo-nos entre mais conversas e apertos de mão, durante uns bons 10 minutos.
– É que – pausa, suspiro – não é todos os dias que se fala...
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5 comentários:

Anónimo disse...

!!?

Se a cena da assistente social aconteceu mesmo, é uma vergonha!

joaquim disse...

Essa da assistente social é única mas não me espanta.

Sou excombatente da Guiné e temos vários excombatentes com problemas gravíssimos e até sem abrigo porque não conseguiram refazer as suas vidas.

Alguém dizia que se fossem toxicodependentes tinham muito mais apoio.

É triste para quem deu a vida pela Pátria, e não interessa aqui a justeza ou não da guerra!

Abraço amigo em Cristo

joaquim disse...

É verdade António, já lá está a segunda parte.

Joaquim

António Vieira da Cruz disse...

Caro anónimo, infelizmente é (ou pelo menos foi) esta a realidade. Partilho da vergonha. Bem-vindo, volte sempre.

António Vieira da Cruz disse...

Caro Joaquim,

Não tenho andado por cá nestes dias, mas já li o segundo texto, muito bom. Obrigado pelo aviso. Estou sempre a aprender contigo.

A causa dos ex-combatentes é-me muito cara. Conteste-se ou não políticas, decisões e ideologias, a História é que não se pode contestar, e todos os combatentes que arriscaram a vida pela Pátria foram os heróis a quem devemos o Portugal que somos hoje.

Vê-se a grandeza moral de um País e muito da sua virtude, pela maneira como são tratados os militares e ex-combatentes. Portugal ainda tem muito que fazer para voltar a estar à altura da fasquia moral que construiu durante séculos de História.

É importante que a vossa (nossa, do País!) causa se faça ouvir, caro Joaquim! Conta comigo para isso, sempre que quiseres mais esta voz.

Um grande abraço