quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Phyllis Schlafly e JK Rowling: destemidas não autorizadas

(originalmente publicado no Jacaré)


 

J.K. Rowling lê um qualquer artigo e interroga-se no seu twitter acerca dos termos usados: ‘People who menstruate.’ I’m sure there used to be a word for those people. Someone help me out. Wumben? Wimpund? Woomud?

Perante a audácia de sugerir o uso da palavra “mulheres”, logo lhe caiu em cima o pesado lobby dos novos costumes. A autora dos livros da saga “Harry Potter” e de “Monstros Fantásticos e Onde Encontrá-los” foi prontamente criticada por Daniel Radcliffe, Emma Watson e Eddie Redmayne, actores que deram corpo no cinema aos heróis principais desses livros. Então ela não sabe que dizer a palavra “mulheres” em vez de “pessoas que menstruam” é prejudicial e “apaga a identidade e a dignidade das pessoas transgénero”, indo contra os conselhos médicos para quem é mais propenso a depressões e pensamentos suicidas? “Não é ódio dizer a verdade”!, desculpa-se por fim J.K. Rowling. Mas para esta gente, J.K. já não tem desculpa. Como se atreve a dizer que o rei vai nu? Não sabe que isso ofende os seus sentimentos?


Valores incutidos na programação infantil da RTP

Aqui mais próximo, em Portugal, tem dado que falar a série “Destemidas” que passou no programa infantil Zig Zag da RTP2. Trata-se dum programa visualmente interessante que recupera figuras secundárias do feminismo, algumas que nunca se destacaram especialmente e outras em boa hora esquecidas pelo tempo… até agora. O propósito desta série apoiada nos nossos impostos através da Comissão Europeia que a financia e da RTP que a transmite é mostrar às crianças que a liberdade das mulheres passa por abandonar os antigos costumes e convenções culturais que supostamente as prendem: os pais, o marido, por vezes os filhos, e sobretudo Deus e a Igreja.

Esteticamente idêntica (cores desmaiadas, animação retro e música de combate) é a série Mrs America, que passa no HBO, e que também versa sobre a vida de feministas um pouco mais relevantes, estas nas décadas de 60-70-80. Como na série da RTP2, para as feministas de serviço as mulheres não se podem realizar e ser felizes em casa, no casamento, em família. Gloria Steinem com o seu estilo e a sua revista, Betty Friedan com a sua bagagem académica e Bella Abzug com a sua combatividade política, são as heroínas desta série. Juntas, serão a linha da frente pela Equal Rights Amendment (ERA), uma proposta de emenda à Constituição dos EUA que consistia em acabar com as diferenças legais entre homens e mulheres no que diz respeito ao divórcio, propriedade e emprego, mas também em introduzir a legalização do aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo e demais questões da ideologia de género na suprema protecção legal que a Constituição confere. Aproveitando o caldo cultural da revolução sexual dos anos 60, a ERA foi aprovada pelo Congresso em 1971 e pelo Senado em 1972, sendo necessária a sua ratificação por pelo menos 38 Estados num prazo de 7 anos. Teve amplo apoio de legisladores democratas e republicanos dos anos 70, incluindo os presidentes Nixon, Ford e Carter. Contudo, na data limite de 22 de Março de 1979, apenas 35 Estados tinham ratificado a ERA e faltaram 3 para que a emenda constitucional se tornasse efectiva.


Phyllis Schlafly: a original e a sua interpretação

O que aconteceu? Foram os homens, patriarcais e machistas que impediram a liberdade e a igualdade de direitos? Pelo contrário. O que aconteceu foi um enorme movimento de mulheres que questionou o verdadeiro fundamento da ERA em relação às políticas e cultura que promovia. Phyllis Schlafly, mulher que liderou o movimento STOP ERA e fundou o Eagle Forum, defendeu que as mulheres já tinham direitos iguais aos dos homens, protegidos na Constituição dos EUA, e tinham até protecções especiais que os homens não tinham em relação a questões como o divórcio ou a participação nas forças armadas. Para este movimento feminino conservador, a ERA trazia era o contrário do que dizia trazer: o fim de privilégios que as mulheres já tinham, uma maior fragilidade dos lares americanos, e a consagração constitucional de ideologias imorais que abriam caminho ao aborto livre e à destruição da família tradicional. Nesta série Mrs America, Phyllis Schlafly é primorosamente representada por Cate Blanchett, que lhe apanha perfeitamente o sotaque, trejeitos, cabelo e forma de vestir. O problema é o argumento, que inventa, especula e denigre esta grande mulher, apresentando-a como uma maquiavélica inimiga das mulheres.

Nesta ideologia de género que não admite dissensões, só é considerada feminista quem uma pequena elite deixa. Deus, os homens, instituições como a família e as igrejas, as tradições e a cultura, a propriedade e a iniciativa privada, tudo são alvos a abater. Uma mulher como Phyllis Schlafly, por mais feminina que seja e mesmo que se apresente como defensora das mulheres, nunca será apresentada como feminista, ou muito menos como "destemida". E até pessoas como J.K. Rowling, que ao longo dos anos defenderam estas causas, não estão salvas de passarem a bestas assim que puserem o pé em ramo verde e ousarem pensar de forma ligeiramente diferente da nova ortodoxia cultural. J.K. Rowling e Phyllis Schlafly podem ter quase nada em comum, mas uma característica as une: são destemidas não autorizadas.

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