segunda-feira, 15 de junho de 2009

o valor que uma marcha tem

A Marcha do Castelo ganhou o concurso das marchas populares de Lisboa 2009, partilhando o primeiro lugar com Alfama. Ao primeiro lugar geral do Castelo, juntam-se os prémios de Melhor Coreografia, Melhor Cenografia e Melhor Figurino.

Neste pequeno grande bairro de Lisboa, os dias viveram-se com muita intensidade. Se os treinos da marcha começaram em meados de Abril com um ritmo de 6 a 8 horas de treino por cada semana, também é verdade que o tema, as músicas, os fatos, os arcos, os patrocínios e todo um planeamento logístico foram imaginados com ainda maior antecedência.

O resultado final que se viu nos 20 minutos de Pavilhão Atlântico no dia 7 de Junho, ou nos 7 minutos de Avenida da Liberdade na noite de 12 de Junho, é o fruto de um grande trabalho que envolve muito mais pessoas que aqueles cerca de 70 que têm a honra e responsabilidade de marchar. Aparecem os 24 pares de marchantes, um par de mascotes, uma madrinha e um padrinho (este ano, a Chiquita e o Joaquim Bastinhas), os suplentes, os doze músicos da banda, os aguadeiros, o porta-estandarte (Sr. Farra, marchante desde 1958), a ensaiadora Maria João Reis. Mas ainda há a Comissão Organizadora (Pedro e Ana Fonseca), a figurinista Rita Álvares Pereira, os cenógrafos Sr. José Ferrão e Sr. João Dourado; há os patrocinadores, há as claques, há os antigos marchantes que dão força aos novos, dando dicas e contando histórias, peripécias...

Antes de ir para o Pavilhão Atlântico ou para a Avenida, a Marcha do Castelo desfila pelas ruas do bairro, entoando os hinos que muitos conhecem. Aparece toda a vizinhança à janela ou às varandas, os que ainda podem descem à rua, marcham, cantam e batem palmas, todos dão ânimo àqueles que vão representar o seu bairro nas festas do Santo António.

Numa rua apertada do Castelo, estranha-se o pingo de chuva que consegue atravessar os quase unidos telhados que encimam as estreitas margens da viela. Olhando melhor, o céu afinal está limpo e a gota não era de chuva, mas a lágrima de uma velhinha debruçada na sua varanda, emocionada talvez pela sua juventude de outrora, de outros dias e de outras marchas...

- Adeus, adeus! O Castelo é que é...! Boa sorte, força!

São Jorge, Santiago, Santo António, São Vicente, Nossa Senhora, a Santa Cruz, o Espírito Santo... tantos são os santos que apadroam o Castelo, que marchar é quase uma fé. As amizades crescem, os amores também. Há espírito de grupo e alterna-se a chinela com o salto alto, conforme a situação, a gente é versátil e sabe sê-lo em cada circunstância. O bairrismo é intenso, os segredos são escrupulosamente respeitados para que a espionagem de outros bairros não surta efeito. As rivalidades são essencialmente regionais: Alfama com o Castelo e a Mouraria; a Bica com o Bairro Alto e a Madragoa; Santa Engrácia com São Vicente; Marvila e o Beato; Carnide e Lumiar... são rivalidades a maior parte do tempo saudáveis, mas também podem dar pancadaria, sabotagens, e outras partidas que, no fim de contas, rimo-nos todos juntos delas. Com um copo tudo se aviva, com outro copo tudo passa.

O concurso das marchas começou em 1932, e foi uma das poucas heranças do Estado Novo que, felizmente, ninguém teve o desplante de com ela acabar ou desacreditar. O apoio da Câmara Municipal de Lisboa é, aliás, e como sempre tem sido, muito importante para a realização destas festas que têm os seus pontos altos nos casamentos de Santo António e nas marcha populares. As marchas envolvem muita gente que, agora só contando com os que trabalham directamente para as marchas, somando os 20 bairros mais as marchas dos Mercados e a da Voz do Operário, estimam-se que sejam pelos menos 2500 pessoas. O bairrismo é cidadania, é amor pela cidade, é companheirismo, é mostra de talentos, e é um excelente cartão de visita oferecido aos turistas.

Entristecem-me aqueles snobs que têm a mania de desdenhar tudo o que lhes cheira a popularucho, que escrevem e ridicularizam tudo aquilo a que gostam de chamar "baixa cultura". Comparam as marchas populares com o Carnaval do Rio e ainda dizem que o que é nosso é pior. Mas faz-lhes falta entrar numa marcha ou acompanhá-la de perto, porque ainda não perceberam como isto é importante para os lisboetas, tão único como o fado. Não compreendem as lágrimas da senhora debruçada na varanda do Castelo, nem se esforçam por o fazer, porque simplesmente não lhes interessa. Dizem que é "baixa cultura", acham que não é chic nem intelectual, e viram-se para os clássicos da literatura e da filosofia, pois só com estes se querem comover, esquecendo-se que todos os grandes clássicos só o são porque têm a virtude de ler tão bem a natureza humana, aquela natureza que desprezam na velhinha do Castelo.

A noite do 12 de Junho passou-se à espera dos resultados do júri até de madrugada. Entre sardinhas, febras e sangria, só as anedotas e imitações da cantadeira Emília encurtaram um pouco a espera e a ansiedade. Bateram as 6 da manhã, e com elas batemos tachos e tambores cantando a alvorada que acordou o Castelo em festa. Outra vez se povoaram as janelas, as varandas, muitos não acreditavam que, passados vinte e um anos, a sua marcha tinha ganho novamente.

- E é e é e é... o Castelo é que é!

Juntavam-se à fanfarra as mulheres de roupão, marchando e cantando connosco pelas ruas fora. Depois de uma longa directa, a festa ainda durou umas 3 horas, e só nos deitámos porque no outro dia tinhamos nova actuação na Arruda dos Vinhos.

- A minha marcha é linda!

Uma marcha não tem valor. Pode-se até fazer o cálculo económico das despesas, mas isso nada significa ao lado do valor sentimental e simbólico que tem para o bairro. A marcha não é só dos marchantes e da comissão, é dos reformados que fazem os arcos e os altares, é das costureiras que tiram medidas e executam os fatos imaginados pela figurinista. É do clube e das pessoas que contribuem com as mais variadas iguarias que nos dão força para marchar. É dos cafés, restaurantes, lojas e empresas de bairro que nos patrocinam quase todos. É de todos os moradores e ex-moradores que vibram com o bairro. É daqueles que nunca lá moraram, mas que se sentem de lá, de coração. E é de Lisboa inteira, até das outras marchas que nos dão luta para fazermos mais e melhor. É de Santo António.

Já a meio da manhã, entre danças abraços e beijos, todos se congratulavam. Demoraram-se as despedidas. "Gravaste as marchas na SIC?" "Sim, sim! Amanhã compra também o Correio da Manhã, que saimos lá!" O Castelo velhinho que é a coroa desta Lisboa sem par, como cantou Amália, está orgulhoso do seu trono, 21 anos depois. E tal como doutras vezes que ganhámos, desta nunca mais nos esqueceremos.

2 comentários:

M. disse...

Tiveste muito bem!
Tenho fotos para te mandar.
Beijinhos ó rei!

António Vieira da Cruz disse...

Obrigado Maria, e obrigado por teres aparecido! Quero ver essas fotografias. Beijinhos