sexta-feira, 8 de maio de 2009

muito antes de Galileu, houve um Chang Heng

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O sentimento de superioridade da China foi ainda mais reforçado por uma avalanche de invenções e de descobertas. Na altura do nascimento de Jesus Cristo, os chineses já tinham inventado o sistema decimal, o papel, a produção da seda (incluindo farrapos de papel feito de seda para transmitir notícias), o colar para os cavalos e a charrua. Tinham compreendido o mecanismo da circulação do sangue e - quinze séculos antes de Galileu - um brilhante cientista e matemático, de nome Chang Heng, inventara o sismógrafo e apresentara o mundo como um globo, para o qual se podia olhar através de uma espécie de grelha cartográfica. Alguns séculos mais tarde, os chineses iriam inventar a pólvora, os fósforos e, até, descobrir o princípio dos rotores e das hélices dos helicópteros.
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in "O Dragão e os diabos estrangeiros - A China e o mundo, de 1100 a.C. até à actualidade", de Harry G. Gelber
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10 comentários:

Alma peregrina disse...

Olá AVC:

Isto é muito interessante, porque me dá a deixa de dar uma achega a este post, de um ponto de vista cristão.

Aqui há tempos terminei de ler um livro ("Science and Creation - from eternal cycles to an oscillating universe") de um historiador de ciências que morreu há pouco tempo: o Frade Stanley Jaki.

Basicamente, o livro relaciona os avanços científicos das várias civilizações com os seus conceitos teológicos.

Ao avaliar a Civilização Chinesa, o que verificamos é um nascimento da Ciência muito promissor mas completamente abortado. Isto, apesar de os chineses terem sido tecnologicamente muito avançados. Só que não se tratam de avanços tecnológicos obtidos por via científica, mas por pragmatismo.

Um exemplo é a medicina chinesa. A acupunctura é eficaz (vários estudos científicos recentes o documentam) mas foi desenvolvida de uma forma pouco científica. A acupunctura não se alicerça em princípios lógicos e causais, mas em princípios filosóficos que, quando aplicados à realidade, "parecem resultar".

Na Civilização Cristã, Deus é Logos (Razão) e ordenou todas as coisas segundo "número, peso e medida". O Homem, sendo imagem e semelhança de Deus, pode perscrutar um Universo que tem sentido.

Na Civilização Chinesa, pelo contrário, predominavam filosofias panteístas e até ateias. Por isso, não era possível aos chineses estabelecerem um método que se fundamentasse no princípio causa-efeito. Era assim possível para eles pensarem que um mau reinado de um Imperador se poderia dever a erros cometidos nas cerimónias fúnebres desse mesmo Imperador (o que inverte completamente o princípio causa-efeito).

Para os chineses, a sombra não era causada pela luz incidindo num objecto. Para os chineses havia três entidades distintas: a luz, o objecto e a sombra.

Por isso, quando os ocidentais chegaram à China, os chineses desprezaram a sua Ciência com base nesse mesmo "sentido de superioridade" que eles tinham. Não foi possível para os chineses aceitarem a doutrina de Galileo, porque eles consideravam que não era possível prever com exactidão os movimentos dos corpos celestes. Por motivos filosóficos, eles argumentavam que, não só os corpos celestes tinham impacto na vida na Terra, como a própria vida na Terra tinha impacto nos movimentos dos corpos celestes. Por isso, era impossível prever os movimentos dos corpos celestes.

Isto é tanto mais paradoxal quando sabemos que os chineses devotaram muito tempo a tentar prever os eclipses. Mas faziam-no não por espírito científico, mas para a elaboração de efígies e para efectuar previsões astrológicas.

Em suma, Chang Heng poderá ter sido um grande sábio, mas não teve um Cristianismo que o sustentasse. Pelo contrário (e apesar do episódio da Inquisição) Galileo teve a sorte de viver mergulhado num Cristianismo fértil para a Ciência.

A Civilização cristã estava destinada a alcançar e até a ultrapassar os chineses. Os chineses eram ricos em tecnologia, mas pobres em ciência. E muito orgulhosos para admitirem essa pobreza.

Pax Christi

Madalena disse...

Muito interessante, não sabia da existência deste senhor. Mas não me surpreende nada eu nunca ter ouvido falar neste nome.

A História que nos é ensinada é muitíssimo compartimentada. Aprendemos tudo de um ponto de vista "ocidental", senão mesmo exclusivamente "europeu". E se não tivermos a sede de ir mais além e conhecer outras culturas corremos o risco de aceitarmos como "verdade" a "verdade ocidental", sem sequer a pormos em questão!...

João Pedro Ferrão disse...

Acho que tive esse livro na mão há uns tempos. A China é realmente uma civilização fascinante sob todos os pontos de vista (filosóficos, literários, religiosos, científicos, etc) e, arrisco dizer, é ainda hoje o mais diferente do Ocidente que conseguimos encontrar - quase como se fosse um contraponto.

Um Abraço

António Vieira da Cruz disse...

Caro Alma Peregrina,

Obrigado pela atenção do comentário e pela riqueza acrescentada a quem o tenha lido.

Não conheço esse livro, mas pelo que contaste, despertou-me interesse.

No entanto, penso que se pusermos as descobertas e avanços chineses em termos de ciência, arriscamo-nos a estar fazendo batota. De facto, o conceito de "ciência" é demasiado ocidental para servir de instrumento de comparação entre estas culturas, se é que são comparáveis, é quase como eleger um jogador de rugby como o melhor jogador do mundo de desportos de bola formato de melão, mas partindo de critérios rugbistas e não de futebol americano.

Não estou certo de que a evolução da ciência europeia e o avanço do conhecimento chinês sejam caminhos concorrentes, embora por vezes tenham chegado a conclusões parecidas (como a descrita no postal), mas com resultados prácticos normalmente diferentes, porque o próprio método e objectivo foi diferente, como bem dás a entender. A medicina chinesa é um bom exemplo disso, pois na práctica não concorre com a nossa cá, nem a nossa com a dos chineses na China, mas complementam-se mutuamente.

Caro Alma Peregrina, desculpa-me neste ponto, mas... o exemplo que dás das cerimónias fúnebres do imperador não está muito bem explicado. Em todas as civilizações é possível pensar-se os disparates que se quiser, mas esse exemplo não demonstra qualquer traço característico ou identitário que se possa generalizar a título de regra para se entender a civilização chinesa. Do conceito de "destino" na China à inversão do princípio de "causa-efeito" vai um enorme passo que, estou seguro, nem a maioria dos chineses nem sequer uma sua grande parte deu ou terá outrora dado. Desculpa mas não posso concordar nesse argumento. É como um historiador chinês do século XXXIV pegar num disparatado pensamento de Francisco Louçã ou de Silvio Berlusconi e usá-lo para descrever um modo de pensar europeu.

Partilho contudo das generalizações que fazes em relação ao orgulho chinês e seus problemas, e do elogio do cristianismo como base estável da evolução científica. Penso que geralmente, é incontornável essa ideia, e que por isso tenho por verdadeira. Mas também é verdade que a ciência não é tudo. Pessoalmente, até prefiro o conhecimento empírico à ciência, pois este é baseado no preconceito popular, muito sábio e pouco valorizado, que conclui sobre a experiência de vida própria e dos antepassados. É essa coisa que alguns chamam de "baixa cultura" que mais me interessa estudar e saber. É nesse campo que chineses, portugueses e qualquer outro povo pode falar "a mesma língua".

Uma pesquisa sobre Chang Heng na internet deu-me muitas outras surpresas. Ora espreita lá. Era de facto um génio.

Um abraço e mais uma vez obrigado pelo excelente comentário.

António Vieira da Cruz disse...

Madalena, obrigado pelo sempre óptimo comentário. Tentar compreender os diferentes ajuda-nos a definir melhor aquilo que somos. Beijo

António Vieira da Cruz disse...

João, o livro vale a pena, apesar de por vezes inclinar demasiado o olhar que deita sobre a China. Mas não se pode pedir mais, afinal as escolhas têm sempre de se fazer.

A cultura chinesa surpreende sobretudo na enorme diferença de métodos e maneiras de ser. Mas em certos aspectos é interessante ver como chega a conclusões muito parecidas com as nossas (perante a vida e a morte, os antepassados, o ambiente e outros conceitos essenciais do dia-a-dia), apesar de usar caminhos completamente diferentes para lá chegar.

São essas as pontes que uma boa diplomacia pode e deve estabelecer, estreitar e aproveitar.

Abraço

Alma peregrina disse...

Caro AVC:

Fico feliz por ter participado! Compreendo as críticas que faz e aceito-as (embora, na minha opinião, é fundamental que o conhecimento empírico seja sustentado por uma busca exaustiva da verdade, ou não será possível uma evolução sustentada que escape à lógica do "tentativa e erro").

Só uma achega em relação ao Imperador e às cerimónias fúnebres: o que eu quis dizer foi que o exemplo dado refere-se, de facto, a uma inversão da sequência causa-efeito.

No entanto, para os chineses, essa inversão não era ilógica, porque simplesmente não existia "causa-efeito". Filosoficamente falando, os chineses não acreditavam na causalidade. Lembre-se do exemplo que eu dei do objecto, da luz e da sombra. Foi isso que matou o método científico na China e foi por isso que todos os avanços chineses em termos de Ciência tiveram raízes filosóficas.

Em resumo, para os chineses tal não era ilógico, porque não existia uma relação causa-efeito na Natureza. Todavia, esta mentalidade poderia atingir o extremo de inverter o princípio causa-efeito para níveis que são, de facto, insustentáveis pela lógica.

Aqui está o parágrafo do livro do Frade Jaki que trata sobre o tema (p. 34-35):

"As the great french sinologist M. Granet, pointed out, «the conviction that the All and everything composing it have a cyclic nature» drastically stymied the chinese awareness of causal connection between the events. A telling evidence of this is the fact that the chinese saw nothing inordinate in attributing the political failure of a certain prince to the sacrificing of humans at his burial. As both political impotence and cruelty evidenced the absence of the same virtue, one could replace the other as explanation regardless of their sequence. What the Chinese preferred to register were not, in Granet's words, «causes and effects, but manifestations, whose order mattered little, conceived as they were separated, but grafted nevertheless on the same root. Equally expressive, they appeared interchangeable»"

A obra de Granet a que Jaki se reporta é esta "La pensée chinoise". Paris: La Renaissance du Livre, 1934 pp.330.

Isto parece-me absolutamente fascinante! Pode parecer-nos uma forma bizarra de pensar, mas tem sentido se aceitarmos certas premissas filosóficas. Infelizmente, acho que não é muito bom para os avanços científicos do povo que nutre uma tal mentalidade.

Pax Christi

António Vieira da Cruz disse...

Caro Alma Peregrina,

"La pensée chinoise" é um grande livro e vale a pena lê-lo. Foi um avanço importante na altura, em relação aos livros ocidentais sobre a China então conhecidos.

O estudo da China é apaixonante, e o seu problema é exactamente esse. É difícil encontrar estudos de cultura chinesa que não tomem um de dois lados: ou desprezar aspectos da cultura chinesa, não a compreendendo devidamente porque partimos dum natural eurocentrismo; ou, mais difícil, abandonando os afectos do nosso berço cultural buscando ser-se chinês como um chinês seria, caindo facilmente em esteriótipos e lugares-comuns que nos estimulam a endeusar demasiado uma cultura que, como todas as outras, tem as suas insuficiências.

A dificuldade chinesa para produzir ciência (economicamente colmatada pela sua enorme capacidade para copiar ciência e tecnologia estrangeira a baixo custo) prende-se, penso, numa barreira cultural ainda mais básica. É que, filosoficamente, tudo o que existe para o chinês, existe em relação. Por exemplo, o homem em relação ao chão é yang, porque o chão é mais yin. Mas em relação ao céu, o homem é yin porque o céu é mais yang. Esta filosofia relativa(ista?) vale para todos os objectos, elementos, coisas. Tornou-se cultural e estrutura o pensamento chinês.

É muito importante para o conhecimento europeu (ou para a ciência) isolar os objectos de estudo para perceber a fundo algumas das suas características e virtuosidades. Ora, um pensamento chinês estruturado a partir da ideia que o que existe, define-se e existe em relação, dificulta que estudem as coisas em separado, e que sigam o mesmo caminho que a evolução científica seguiu cá. Mas interessante é ver como chegaram a muitas conclusões iguais e parecidas às nossas, e muitas vezes antes de nós.

Um abraço

Alma peregrina disse...

Caro AVC:

Admito que a tese do Frade Jaki possa ser um pouco eurocêntrica (ou até cristocêntrica). De qualquer das formas, foi bom para aprender melhor as nuances culturais, científicas e teológicas das várias Civilizações.



Sim, eu conheço a teoria do yin e yang.

Aliás, o exemplo que eu dei sobre o objecto, luz e sombra ilustra isso mesmo.
No pensamento ocidental, a sombra é "causada" pela luz bloqueada pelo objecto.
No pensamento chinês, a sombra existe porque é yang, e tem de existir uma quantidade equivalente de yang e de yin (que seria a luz).




Quanto ao facto de ambas as civilizações terem chegado a conclusões semelhantes, isso pôs-me a pensar...

Será que tal não se deverá a uma maior antiguidade da civilização chinesa, acompanhada de períodos de paz mais longos? O conhecimento empírico necessita de tempo para se desenvolver. Recordo que, no Ocidente, as Civilizações nasceram e caíram a um ritmo mais alucinate do que na China...

Bem, não sei... isto é apenas uma hipótese... a Ciência é a minha especialidade, mas a História, nem por isso...

Fico-me por aqui, não quero tornar este post excessivamente prolixo. Muito obrigado pela discussão de ideias. Gostei muito!
:)

Pax Christi

António Vieira da Cruz disse...

Obrigado eu Alma Peregrina, tive muito gosto. Um abraço